Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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Entrevistas

Lourenço Mutarelli: um artista na acepção da palavra

3 março 2001

O Pato Camaleão, no estilo Hal Foster, que é dos artistas preferidos de Lourenço MutarelliUHQ: Devido ao seu traço detalhado, você nunca conseguiu manter uma produção regular de seus trabalhos. Quanto tempo, em média, você leva para fazer uma página?

Lourenço: Em média, um dia e meio. Eu tenho uma coisa que não gosto de chamar de rotina… É uma disciplina, que é meio uma “cerimônia rigorosa”. Trabalho, no mínimo, dez horas por dia. Teve época de trabalhar até dezoito horas! E eu não tenho calo na mão, sabe por quê? Porque eu nunca aprendi a segurar no lápis! Eu seguro de uma forma totalmente errada, a professora brigava comigo, por causa disso. Nesse álbum novo (nota do UHQ: A Soma de Tudo, que encerrará a trilogia do Detetive Diomedes), algumas levaram cinco, seis dias. Já cheguei a ficar mais de uma semana numa página. Às vezes, produzindo muito pouco, acertando um traço ou outro…

UHQ: O detalhismo é uma característica sua…

Lourenço: Eu não gosto muito desse estigma de artista. Eu sou muito mais um artesão, acho.

UHQ: Há uma frase sua que é ótima: “Eu odeio branco nas páginas”. Vem daí a sua predileção por sempre distorcer os desenhos, ocupando o maior número possível de espaço dentro do quadrinho?

Lourenço: Na verdade, hoje estou percebendo que não é que o odeio, mas tenho uma profunda dificuldade de lidar com ele, de ocupar bem esse espaço. O Rei do Ponto foi o primeiro trabalho em que consegui me relacionar um pouco melhor com o branco. Acho que, na música, ele seria o silêncio, a pausa.

UHQ: Seu trabalho é mais voltado ao preto e branco. Você curte fazer histórias coloridas?

Lourenço: Eu fiz várias! As que eu fiz pra Cybercomix, muita gente pensa que é por computador. Tem coisas que as pessoas não sabem, como o fato de eu ter trabalhado dois anos no Mauricio de Sousa, pintando cenários de animação. Então, eu tenho uma agilidade com tinta. Só não curto muito, porque é muito fácil pra mim. Como não existe branco, você simplifica tudo com um chapado, com uma texturinha… Facilita muito, e eu não gosto disso.

Nesse momento de nosso bate-papo, agradabilíssimo, Lourenço nos mostrou um trabalho que produziu para a Cybercomix, mas que não foi utilizado, no qual revela toda sua versatilidade. São histórias do Pato Camaleão, assinadas por Zigmundo Mussarela (uma “entidade” que ele “recebe por trás”), de um teor agressivo e sarcástico. Nessas pranchas, ele reproduz à perfeição os traços de várias feras das HQs, como Chester Gould (Dick Tracy), Hal Foster (Príncipe Valente), Julio Salinas (Cisco Kid), Hugo Pratt (Corto Maltese), Art Spiegelman (Maus), Charles Schulz (Snoopy), Hergé (Tintin), Alberto Breccia (Mort Cinder), e dos brasileiros Angeli, Fernando Gonzalez, Marcatti e Jô de Oliveira. Ou seja, ele desenha em estilos completamente diversos; em preto e branco e colorido; com desenhos limpos e rebuscados. Como o próprio Lourenço diz, os roteiros não devem ser levados a sério, mas o resultado final do visual das páginas é espantoso, apesar dos personagens principais de cada artista terem recebido bicos de pato!

Agora, de volta à entrevista!

UHQ: Fale um pouco sobre Transubstanciação (nota do UHQ: seu primeiro trabalho “de autor”, publicado em 1991, pela Dealer Editora). Onde você publicou antes do lançamento dessa obra?

Lourenço: Eu comecei a trabalhar nele para lançar pela editora do Marcatti, a Pro-C. Iam ser mil exemplares. Por isso, fiz a historia que queria, não me prendi a nada. Nessa época, surgiu o Carlos, da Editora Dealer, que se interessou e lançou. Depois, ele sumiu, tentei achá-lo um tempo atrás, mas não consegui.

Antes, eu tinha publicado em fanzines, na Animal e muita coisa na Tralha e na Porrada!

UHQ: Na época, o Transubstanciação vendeu muito bem, não é?

Lourenço: Verdade! Transubstanciação vendeu 13 mil exemplares em um mês. Nunca mais eu vendi isso, nem juntando todos os álbuns. Teve muita repercussão quando saiu, vendeu pra caramba! Depois, recebi até prêmio, na Bienal do Rio.

Além de um grande desenhista, Mutarelli é também um excelente roteirista

UHQ: Por causa de seu traço deformado, você recebeu muitas negativas, no início da carreira?

Lourenço: Depois que saiu Transubstanciação é que eu descobri isso. Vinham os repórteres e perguntavam por que o traço era deformado, eu ficava meio ofendido, porque, na época, era hiper-realista. Eu tinha uma distorção visual, sei lá. Eu via as coisas daquele jeito. Hoje, eu percebo que existe uma deformidade, mas antes eu não enxergava isso. Não era proposital! É que eu não desenhava muito bem (risos) ou, talvez, eu visse as coisas de uma forma um pouco diferente.

UHQ: Qual foi a repercussão do seu trabalho em Portugal (Nota do UHQ: a Devir está lançando os álbuns de Lourenço Mutarelli por lá)?

Lourenço: Foi demais! Fizeram uma exposição, onde cada artista um tinha uma sala. Quando entrei na minha, tive que sair! Não fui macho, até perdi o fôlego! Tirei até fotos! Eles ampliaram meus desenhos maiores do que eu, na parede, com retroprojetor. Quis até conhecer as pessoas que fizeram aquilo. Uma página que eu tenho, toda manuscrita, que eu levei um tempão pra fazer, eles fizeram do tamanho de uma parede! Me trataram como se eu fosse um príncipe.

Universo HQ: E os leitores lá curtiram seu trabalho?

Lourenço: A grande maioria não conhecia meu trabalho. Alguns jornalistas já tinham me visto na Animal. Ganhei quatro estrelas na avaliação de um jornal… Eu estava com medo, porque eles são extremamente críticos, mas está vendendo. Não como o Angeli, que publica tiras e tem até um desenho animado veiculado por lá, mas está indo. É um mercado incrível, as pessoas têm acesso aos quadrinhos com facilidade, principalmente, os álbuns europeus.

UHQ: Existem planos de publicar seus álbuns em outros países?

Lourenço: O próximo passo vai ser a Espanha. A Devir está preparando o lançamento para esse ano ou o próximo.

UHQ: Por que você saiu do projeto Machado de Assis em quadrinhos (Nota do UHQ: uma revista que adaptaria para as HQs 4 contos do escritor, mas que ainda não saiu por falta de patrocínio)?

Lourenço: Na verdade, há dois anos, eu apresentei um projeto idêntico para o Itaú Cultural: quadrinizar alguns contos do Machado de Assis. Eu até especifiquei quais, mas não foi aprovado e voltou. Depois, surgiu esse cara (o jornalista Marcelo de Andrade) me procurando. Era interessante, mas achei um desafio monstruoso, porque fazer quadrinhos, pelo menos para mim, não é só ilustrar um texto. Você precisa transformar, traduzir de uma linguagem para outra. Não é só pegar o texto e jogar no balão. Ia ser um desafio grande, do jeito que eu gosto. Mas aconteceram algumas divergências, coisas que não batem com minha índole e meus princípios, e eu preferi sair.

Lourenço Mutarelli criando uma ilustração exclusiva para o Universo HQ

UHQ: Em O Dobro de Cinco e O Rei do Ponto, há várias referências visuais à cidade de São Paulo. Você faz muita pesquisa para os seus trabalhos? Como você executa esse trabalho? Leva muito tempo?

Lourenço: Eu vejo, vou ao local e desenho. Às vezes, leva um dia inteiro. Só fico muito chateado, com algumas coisas que acontecem. Outro dia, eu queria desenhar a estação de trem, na região do Brás, e me mandaram embora. Disseram que eu não podia tirar fotos. Aí, falei: “mas não estou fotografando, estou desenhando”. Vieram seguranças e ameaçaram me tirar o desenho. Eu teria que pedir autorização, me deram um telefone, pra onde liguei umas seiscentas vezes e ninguém atende. O número existe, mas devem ter guardado o telefone dentro duma gaveta.

Queria muito desenhar o Brás. Mas não permitem, nem no metrô, nem na parte ferroviária. A Estação da Luz, também tentei e não deixaram. Isso me deixa muito revoltado. Ai, a saída é desenhar lugares semelhantes, mas não é o que eu queria.

UHQ: Você não usa fotografias?

Lourenço: Às vezes. Outras vezes misturo. Mas eu gosto mesmo é de desenhar o objeto, o cenário. Talvez eu tenha adquirido isso na faculdade, desenho de observação. Como no caso do trator, de O Dobro de Cinco, por exemplo. Aqui na esquina de casa tinha um trator muito legal, que sempre me chamava atenção. Um dia, pedi pra desenhá-lo. Eles estavam de mudança, mas depois que viram o primeiro esboço que eu fiz, deixaram! Fiquei umas seis horas em pé, apoiado numa prancheta de madeira, só “rabiscando”.

Página INÉDITA do álbum A Soma de Tudo, EXCLUSIVA do UHQUHQ: Depois de O Rei do Ponto, os leitores estão aflitos para saber como terminará a saga de Diomedes (nota do UHQ: um detetive particular que é o principal personagem da história). Você pode nos adiantar algo sobre o desfecho da trama (A Soma de Tudo)? Que diabos ele irá fazer em Portugal?

Lourenço: Isso foi a coisa mais absurda, porque eu tinha que fechar dois álbuns e apareceu a viagem, em outubro de 2000. Não podia perder essa oportunidade! Chegando lá, Lisboa tem algumas palavras chaves, duas muito fortes: magia e saudade. E tem mais algumas como maçonaria, sociedades secretas… Pensei: “Dá pra amarrar”!

A idéia de concluir a trilogia numa aventura em Portugal pintou lá. Quando eu viajei, faltavam as ultimas dez páginas do Rei do Ponto pra entregar. Eu voltei, concluí o trabalho e comecei a escrever. Eu acho que está legal. O único problema é que percebi que daria pra fazer um quarto volume, mas eu não vou fazer isso. Vou fechar nesse álbum!

Mas já resolvi que vou continuar com o Diomedes. Pretendo fazer álbuns com aventuras independentes da trilogia, algo meio Tintin, mesmo. Contar algumas aventuras. Está cada vez mais fácil trabalhar com o Diomedes. Ele é quase como… não um amigo, pois eu não teria um amigo como ele; mas um cara que eu conheço bem. Eu pretendo esgotar um pouco mais o Diomedes. Não quero me desligar dele tão cedo.

Sobre os mistérios dos outros álbuns, o que eu posso falar? Bom, sobre o Enigmo, é resolvido e não é (risos), entende? O Diomedes acha que concluiu o caso, mas ele não é muito bom pra solucionar as coisas. Então, eu vou deixar uma pista pro leitor, vai ter duas soluções, duas possibilidades. O caso do assassino que usa veneno de rato, isso vai aparecer como um tapa, tão rápido que o leitor vai pensar “mas era isso?”.

UHQ: Aliás, por que títulos tão emblemáticos? Você disse que eles dizem mais do que aparentam. Isso será revelado no terceiro álbum?

Lourenço: O significado de cada título é revelado nos próprios álbuns. O Rei do Ponto é um nome estúpido, banal; O Dobro de Cinco, claro que é dez, mas ambos significam algo, ligado ou ao mundo místico, mesmo. A Soma de Tudo é uma das últimas palavras usadas no próximo livro.Vai ser explicado nele mesmo.

Nos romances policiais que eu lia quando era adolescente, sempre tinha algo do tipo “A loira fatal”, ou “O caso da lata vazia”, uns nomes meio chulés, né? O que eu acho muito legal são esses livros “O mistério de não sei o que lá”. Nos álbuns independentes da trilogia, os nomes vão ser nessa linha, “O caso de…:”, “O mistério de…”.

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