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A Coréia e os manhwa: os quadrinhos do país da manhã serena

18 junho 2003

 

Página de um manhwa do início dos anos 80
Página de um manhwa do
início dos anos 80

A Coréia é um país cujo nome todos conhecem, mas do qual praticamente nada se sabe. Apesar do recente campeonato mundial de futebol parcialmente realizado por lá, poucos aspectos de sua cultura foram divulgados no mundo ocidental. Escreveu-se muito sobre coisas exóticas, como o consumo de carne de cachorro, mas ninguém acrescentou que isso é costume em todo o Extremo Oriente.

Estive por duas vezes na Coréia e dá para perceber sua riqueza, pujança, história e o lugar especial que ocupa no mundo. Especialmente, quanto à sua longa luta pela independência política e pela manutenção de sua cultura milenar.

Apesar de seu nome, na língua local, querer dizer país da manhã serena, durante os três últimos mil anos nada foi tranqüilo, pois teve que se resguardar contra o poderoso e avassalador Império Chinês. Mesmo assim, foi através da Coréia que fluíram todas as influências culturais que iriam criar a cultura japonesa, a partir do século VII da era cristã.

Os coreanos designam as histórias em quadrinhos manhwa; e este termo passou a ser utilizado a partir da década de 1920, importado do Japão (mangá) e também da China (lianhuanhua).

Mas é preciso lembrar que foi na Coréia que tivemos os primeiros exemplos de impressão tipográfica, já a partir do século VIII. E, no século X de nossa era, tivemos o primeiro exemplo de arte seqüencial, com o Bomyeongshiudo, uma história na qual uma vaca explica um cânon budista sob forma de junção de imagens e texto, exatamente como ainda se faz hoje em dia nas nossas HQs.

Bomyeongshiudo: Uma vaca explicando cânon budista no Século 10

A formação e a consolidação da linguagem dos quadrinhos coreanos

Influência dos mangás japoneses nos manhwa
Influência dos mangás japoneses nos manhwa

As primeiras HQs e cartuns no sentido moderno, isto é, veiculados através dos meios de comunicação de massa, surgiram a partir do final do século XIX e início do século XX.

O primeiro caricaturista coreano, Lee Do-yeong, foi o pioneiro, com seus desenhos publicados sob o título Saphwa, no jornal Daehanminbo, em 1909. No ano seguinte, esta publicação foi fechada por ordem do governo colonial japonês e, com isso, interrompeu as edições legitimamente coreanas até o final da Guerra do Pacífico, em 1945.

Depois desse fato houve, então, uma verdadeira explosão de quadrinhos, tanto em jornais como em revistas coreanas, mas elas primavam pela recusa de modelos japoneses e, logo a seguir, pela procura de autonomia (especialmente, na Coréia do Sul - a que nos vamos referir daqui por diante) da forte influência norte-americana.

Influência dos mangás japoneses nos manhwa
Influência dos mangás japoneses nos manhwa

Apesar disso, é importante notar que autores japoneses do pós-guerra, como Osamu Tezuka, tiveram um sucesso imenso na Coréia. Esse amor-ódio dos artistas de HQs coreanos caracteriza toda a produção de quadrinhos até os dias atuais.

Por um lado, há o fascínio da imensa produção japonesa, ladeada pelos quadrinhos americanos; e por outro, uma tentativa desesperada de implantar valores e heróis próprios.

Uma das primeiras tentativas bem sucedidas foi o Soldado Todori, de Kim Yong-hwan, que surgiu como o "pai" das HQs coreanas. Publicada em 1952, narrava a coragem dos soldados do Sul.

O sucesso foi estrondoso e deu lugar a uma série de publicações tipo fanzine, chamadas takji manhwa, de pouca qualidade gráfica, mas que, entre os anos 1953-54, consolidaram a produção de HQs coreanas.

Desenho de 1954 de Kim Yong-hwan o pai das HQs coreanas
Desenho de 1954 de Kim Yong-hwan o pai das HQs coreanas

Os takji manhwa eram, sobretudo, quadrinhos de aventura que se passavam no Ocidente, como A ilha do tesouro de Jane, O segredo da agenda azul,entre outros, cujos artistas expoentes foram Kim Seong-hwan, Sin Dong-heon e Go Il-yeong, que ainda atuam neste gênero.

Após a guerra, foram publicadas algumas histórias populares, e a mais célebre foi Arirang, na qual se destacaram os desenhistas Kim Yong-hwan, (o autor do Soldado Todori), Shin Dong-u, Kim Kyeong-eon, Park Ki-Jeong, entre outros.

O gênero dominante foi o myeongrang manhwa, ou seja, as histórias em quadrinhos humorísticas para adultos. Desta forma, os quadrinhos coreanos no final dos anos 1950 se diversificaram e desenvolveram-se rapidamente. Outros autores de destaque foram Park Ki-dang e Shin Dong-u, que introduziram personagens em temas de ficção científica, aventura e narrativas históricas.

Entretenimento para as massas

HQ distribuída durante a Guerra da Coréia, pelas forças da ONU, aos soldados
HQ distribuída durante a Guerra da Coréia, pelas forças da ONU, aos soldados

Após a Guerra da Coréia (1950-53), apareceram revistas de HQs contendo 200 páginas. Este tipo de publicação, contudo, não durou muito e deu lugar para algo inusitado na produção coreana: os manhwabang.

Pode-se definir este conceito como uma espécie de biblioteca particular, na qual as pessoas alugam revistas de quadrinhos no lugar onde lêem. Há milhares destes lugares espalhados por toda a Coréia.

E aquilo que começou em época de vacas magras como uma forma de se poder ler quadrinhos por um preço menor, continua ainda hoje, apesar dos tempos de bonança. Mensalmente, são publicadas centenas de títulos em papel de baixa qualidade, exclusivamente para o sistema de manhwabang - quadrinhos de aluguel.

Capa da revista Sesonyeon, publicada nos anos 70
Capa da revista Sesonyeon, publicada nos anos 70

Mais tarde, a grande demanda do público fez desenvolver dois gêneros entre os quadrinhos: as HQs para adultos e as humorísticas, na imprensa da Coréia. Em 1968, foi criado o semanário Sunday Seoul, que dominou o mercado até os anos 1980.

A série Gondol, de Park Su-dong, levou um grande público para o jornal Sunday Seoul, e o sucesso deveu-se ao teor do humor satírico e das relações homem-mulher.

Nos anos 70, Kang Cheol destacou-se entre os desenhistas famosos pela história Sarangeu nakseo (O calor do amor, em português), cujo enredo trazia à tona os problemas da juventude e tornou-se um repertório para a cultura da geração jeans.

Nesta época, também se desenvolveram os quadrinhos para crianças, cujos principais expoentes foram Kil Chang-deok, com a história Keobeongi lutjip Dolne (Meu vizinho Dol), Yun Seun-hun, com Dunshimi Pyeoryugi (O naufrágio de Dunshimi), entre muitos outros.

O Renascimento dos quadrinhos coreanos - os anos 1980

A Ilha do Tesouro, de Ge Won i
A Ilha do Tesouro, de Ge Won i

Durante a década de 1980, surgiu uma grande quantidade de novos desenhistas que, por meio das histórias em quadrinhos, falavam de sua geração e tinham como crença que a influência dos manhwa iria mudar o mundo. Eles chamavam a si próprios de minjug manhwa, isto é, quadrinhos do povo.

Os desenhistas que mais se destacaram na época foram Lee Hyeon-se, Park Bong-seong e Go-Haeng-seok. O herói da história do período, de autoria de Lee Hyeon-se, era um jovem que vem de família pobre, que se tornou um grande jogador de beisebol e venceu os japoneses. Para completar - ou complicar - a história, gosta de uma moça de família rica. O importante é que foi um marco para o estabelecimento dos quadrinhos adultos no país.

Outro ponto forte foi a publicação de Bumulseom (A ilha do tesouro). Criada em 1982 e constituída pelos grandes nomes de sua geração, foi um sucesso de público. Foi a primeira revista mensal devotada inteiramente aos manhwa.

Nas décadas subseqüentes, as editoras coreanas passaram a utilizar o sistema japonês de segmentação de mercado, com revistas semanais baseadas em idades, tanto para rapazes como moças. O mercado explodiu, com tiragens de centenas de milhares de cópias.

A era digital - Quadrinhos em telefones celulares!

Arte de Yang Young-soo, destaque dos anos 90
Arte de Yang Young-soo, destaque dos anos 90

Mas tudo que é bom acaba logo. A exemplo da própria indústria editorial de quadrinhos no Japão, que após os anos 1980 - depois de uma explosão monumental de vendas -, teve também um decréscimo de vendas, a Coréia enfrentou o mesmo problema.

Esta retração se deveu a dois fatores: boa parte da produção japonesa entrou na Coréia, seja por vias oficiais ou por pirataria, diminuindo a chance dos artistas locais. Segundo, aquilo que os autores coreanos faziam antes da segmentação do mercado não mais teve lugar no novo sistema.

O quadrinho tradicional explicava o texto pelo desenho e vice-versa. Nesta nova era, com publicações semanais, os autores ficaram privados da liberdade de compor a história ou as páginas do jeito que quisessem.

A indústria dos manhwa sofreu um baque, mas o advento da internet transferiu o mercado e a criação dos quadrinhos para as telas dos computadores. As HQs rapidamente se adaptaram ao novo meio, e o desenhista Kwon Yoon-joo foi apontado como um dos pioneiros neste sentido, com o site Snowcat .

Manhwa no celular (aqui traduzida para o francês)
Arte de Yang Young-soo, destaque dos anos 90

Assim como ele, outros desenhistas trabalham a partir da rede com desenhos de qualidade, numa forma popular de transmissão. Veja mais nos sites da Kangfull, e editoras como a Candy, a Jumps, a Comic Plus ou a Akzine.

Manhwa no celular
Manhwa no celular

E a Coréia não parou na telinha... Mais do que na internet, agora os manhwa têm seu lugar garantido nos telefones celulares - com movimento e som.

O país tem a maior índice de equipamento em celulares e está entre os mais desenvolvidos do mundo. Os serviços de telefones celulares têm telecarregamento para quadrinhos, beneficiando assim as novas tecnologias e estimulando o mercado de trabalho dos desenhistas.

Produção expansão e pesquisa nas universidades e museus de manhwa

Tendo um vista o tamanho da Coréia do Sul e sua população, pode-se considerar a tiragem e o consumo das HQs enorme. No ano de 2001, foram publicados 9.177 títulos, com 42 milhões de exemplares vendidos, num país de 42 milhões de habitantes.

O belíssimo traço de Choi Ho-cheol, um dos talentos dos anos 2000
O belíssimo traço de Choi Ho-cheol, um dos talentos dos anos 2000

Em janeiro de 2003, o Salão de Angoulème, na França, dedicou uma grande exposição aos manhwa e, segundo o seu curador, Sung Wan-kyung, a edição de HQs na Coréia representa 27% do total de publicações em geral e 36% das vendas.

A metade dos quadrinhos é de cunho educativo e revistas. O mercado de HQs monta a 60 milhões de dólares para um total de 430 milhões de produtos gráficos em geral. O mercado digital (produtos online) é de 14 milhões de dólares.

Desenho de Hong Seung-woo feito em 2002
Desenho de Hong Seung-woo feito em 2002

O ensino de histórias em quadrinhos também teve uma grande expansão. Oito universidades possuem atualmente um Departamento de HQs e se acrescentarmos a isso os cursos de Desenho Animado e de Criação Multimídia, o número ultrapassa a cifra de 11.

A Coréia possui também um Museu de Quadrinhos: Chungkang, ligado ao Chugkang College of Cultural Industries, uma instituição no campo de artes e criação, aberto em 2002 com exposições permanentes baseadas em três temas: Quadrinhos Caricatura, Quadrinhos e Movimento e Quadrinhos e Emoção.

Estes são os exemplos da dinamicidade de uma nação que valoriza, acredita, investe e cria novos mercados para as HQs fazendo sempre acontecer, a cada dia que nasce, mais novidades dos manhwa no país da manhã serena.

 

Sonia M. Bibe Luyten é a autora dos livros: O que é Histórias em Quadrinhos, Histórias em Quadrinhos - leitura crítica e Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. Sua coleção, com revistas de países do mundo inteiro, é de deixar qualquer um maluco. Mas o melhor, mesmo, é que, mensalmente, ela vai estar passando um pouco desse seu conhecimento pros leitores do Universo HQ.

Saiba mais sobre a autora:
Sonia M. Bibe Luyten

Edição francesa de Armagedon (lançada no Japão), feita pelo corenao Hyun Se Lee
Edição francesa de Armagedon (lançado no Japão), feita pelo corenao Hyun Se Lee

 

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