Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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Hellblazer: a Era de Ennis

1 dezembro 2001

John ConstantineDias atrás, estava em meu ambiente de trabalho lendo Um Patife nos Portões do Inferno, saga que marcou a despedida de Garth Ennis do título regular de Hellblazer. No dia seguinte, foi a vez de Quarenta e Medo & Repugnância, dos mesmos autores e personagem. A medida em que a história foi avançando, comecei a reparar em algo, no mínimo, singular. Vinte edições - americanas, já que, no Brasil, John Constantine: Hellblazer tinha o dobro de páginas da original - antes do epílogo de Um Patife... e Ennis começava a plantar as sementes de sua despedida. Não que o autor tenha sido original. Afinal, Alan Moore e Grant Morrison, citando apenas dois roteiristas, já haviam usado desse recurso em O Monstro do Pântano e Homem-Animal, respectivamente.

Lógico que estou falando de grandes roteiristas, mas a mecânica com a qual eles e vários outros - infelizmente, nem todos - trabalham é uma das que mais se encaixa nos quadrinhos da atualidade: eles chegam, pegam um personagem, usam-no para transmitir suas idéias e, no fim, entregam-no quase que "limpo" para que outra pessoa assuma o título.

Peguemos o caso do próprio Hellblazer como exemplo. Logo no arco em que estréia, Hábitos Perigosos, Ennis tira John Constantine de um manicômio e lhe dá um câncer de pulmão. Como a doença é terminal, antes de morrer, ele decide se despedir das pessoas que gostava. Então, parte para a Escócia, para visitar o beberrão Brendan, amigo de longa data criado por Ennis. Infelizmente para John, ou felizmente, se analisarmos como as coisas se desenrolam, Brendan também está com suas horas contadas, graças a uma falência total de seu fígado. Para piorar as coisas, ele havia feito um pacto com o Diabo, que levaria sua alma, desde que, através de um encanto simples, conseguisse transformar água benta na melhor cerveja já tomada por um mortal. Parece meio sem sentido uma pessoa vender sua alma ao Diabo por algo tão fútil, mas não é sempre assim?Capa da edição encadernada americana de Hábitos Perigosos

De qualquer forma, na hora marcada, o "capeta" aparece para requisitar seu prêmio, ou seja, a alma imortal de Brendan.... e se encontra com Constantine, que engana o Mestre das Mentiras e salva o amigo, condenando a si próprio. Segundo a mitologia instituída por Ennis para Hellblazer, ao ser ofendido por um mortal, o Diabo passa automaticamente a ter direito sobre sua alma.

Constantine, então, que já estava condenado pelo câncer, fica ainda mais determinado a não morrer. Depois de tentar, sem sucesso, conseguir o auxílio de Brendan e de Ellie - uma súcubo que ele ajudara anos antes - percebe que a única maneira de se livrar das garras do Primeiro dos Caídos, seria enganando não só a ele, mas também aos seus "irmãos".

Aqui, vale uma explicação: assim como todo o Universo DC, o Inferno da editora é muito mutável. Vira e mexe novos demônios - sempre um triunvirato - assumem o controle do lugar. Pouco antes de Ennis estrear em Hellblazer, Lúcifer havia abandonado o local, depois de um atrito com Sandman, deixando o Inferno sem governantes. O restante do triunvirato da época havia sido deposto por Etrigan. Este, no entanto, não pôde colher os frutos de sua vitória, graças a Merlin e Jason Blood.

De qualquer forma, Ennis instituiu seu próprio Triunvirato, composto por demônios conhecidos apenas como O Primeiro, O Segundo e O Terceiro dos caídos. Segundo o autor, o Primeiro dos Caídos estava no Inferno antes mesmo de queda de Lúcifer e, quando este resolveu abandonar seu reino, assumiu as rédeas do lugar, junto com seus dois "irmãos".

Voltando a John Constantine... Ele descobre que a única forma de se livrar de uma eternidade no Inferno é enganando o maior dos enganadores. Assim sendo, coloca em prática um plano simples, porém arriscado: Negociar sua alma com o Segundo e o Terceiro, sem que um soubesse do acordo que fizera com o outro. Feito isso, o Primeiro perderia seu direito sobre a alma de John, e o mesmo valeria para seus "irmãos".

Dessa forma, John não só se livra da danação eterna, como consegue uma cura para o seu câncer e, ainda, se torna virtualmente imortal, já que, se vier a falecer, a disputa por sua alma deflagraria uma guerra no Inferno.

É lógico que o Primeiro dos Caídos não ficou nem um pouco satisfeito por ser enganado por um mero mortal como John Constantine. E sua busca por vingança acabou sendo o motivador de todo o período em que Garth Ennis esteve no título.

Eu gosto de comparar o período de Ennis em Hellblazer - ou de Morrison no Homem-Animal - com a série de TV Arquivo X. De cara, é estabelecida uma mitologia para a série, na qual gira o personagem e, aqui e ali, são contadas algumas histórias que, aparentemente, nada tem a ver. No caso de Hellblazer, essas histórias acabam tendo sentido se lidas individualmente, mas adquirem um significado muito maior quando observadas em conjunto.

Personagens de HellblazerHábitos Perigosos nos mostra em qual situação se encontra a vida de Constantine naquele momento. Além disso, apresenta os personagens que cercarão sua vida ao longo dos anos seguintes: Brendan, Kit, Ellie, os Caídos, o Esnobe, Charles Patterson, sua irmã, Cheryl e sua sobrinha, Gemma, dentre outros.

Aí vem O Pub Onde Eu Nasci e O Amor Mata, onde John ajuda dois fantasmas a se vingarem dos responsáveis pela destruição do pub onde os dois se conheceram, que era importante também para Constantine, que o vê como um lugar de refúgio, aonde vai regularmente para planejar as ações do dia. A história mostra também um estreitamento de sua relação com Kit.

O Senhor da Dança é uma história natalina, na qual John ajuda uma espécie de encarnação dos natais passados - Pré-Cristo- a reencontrar um sentido para a sua existência. Mais um personagem adentra a trama, assim como em A Confissão, onde John confronta um padre que teve sua vida tocada pelo Primeiro dos Caídos.

Este é o Diário de Danny Drake só tem importância pelo fato de nos apresentar a demoníaca Triskele. Ela tem um papel fundamental no arco seguinte, Meninos & Meninas. O Primeiro dos Caídos sabe que Ellie conhece Constantine e decide fazê-la falar. Ellie foge e recorre à ajuda de John para se livrar da perseguição do Senhor do Inferno. É nessa história que ficamos sabendo do destino do Inferno após Lúcifer ter abandonado o trono e vemos o primeiro encontro dela com John.

Ellie é uma súcubo, que seduziu e se apaixonou por Tali, um anjo do Senhor. John fez o que pôde para manter o Inferno longe da criança quando esta estava nascendo, mas não conseguiu impedir que o Céu a levasse. (NOTA: Qualquer semelhança com a concepção de Gênesis e Preacher não é mera coincidência). Ao fim de Meninos & Meninas, Constantine obtém sua terceira vitória sobre o Primeiro dos Caídos. Meninos & Meninas é uma das mais importantes histórias da mitologia dessa fase de Hellblazer.

O Rei dos Vampiros nos é apresentado em Vidas Notáveis, e Constantine ganha mais um inimigo, quando se recusa a trabalhar para ele.

Um pouco do passado de John é mostrado em Fim da Linha, quando ele vai até Liverpool tentar convencer a sobrinha a não se meter com magia. Enquanto Kit acaba convencendo a menina a deixar esses assuntos de lado, John visita o túmulo do primeiro Constantine a se envolver com magia.

Hellblazer na capa da revista Vertigo, publicada na época pela editora Abril JovemFim da Linha é um título apropriado para essa história, já que marca o fim da publicação de Hellblazer, e da revista Vertigo pela Abril Jovem.

Aí, vem Medo & Repugnância, um dos arcos mais importantes dessa fase, praticamente anunciando que o fim está próximo. Nela, temos a volta de Charles Patterson, que pretende manipular o Esnobe - que, na verdade, é o Arcanjo Gabriel, o mesmo que disse à Virgem Maria que ela esperava o filho do Senhor - e, para isso, precisa tirar Constantine de seu caminho. Infelizmente, para ele, John já se antecipara, enviando Ellie para seduzir e arrancar, literalmente, o coração do arcanjo.

Os personagens Dez e George são apresentados e Medo & Repugnância marca o fim do namoro de Kit e John, o que traria conseqüências não muito boas para ele. Querido John mostra a separação de ambos, e um Constantine totalmente perturbado, por causa disso.

Logo em seguida, vem Amor Manchado. Após ser abandonado por Kit, Constantine resolve que nada em sua vida importa. Ele deixa a magia, sua casa, seus amigos de lado e vira um mendigo bêbado nas ruas de Londres. Por quase um ano, vive de esmolas para comprar a próxima garrafa de bebida. É interessante notar esse lado do personagem. Ennis mostra que aquele mago durão é tão mortal e vítima das armadilhas do amor, quanto qualquer pessoa.

Amor Manchado tem um interlúdio, trazendo um pouco da vida de Kit, de volta à Irlanda e mostra que a encrenca realmente persegue seu ex-namorado, quando o Rei dos Vampiros resolve se vingar de John. Graças à sua característica sorte, Constantine consegue destruir o vampiro. Ao fim da saga, ele retoma a sua vida.

Depois de viver um ano nas ruas, um descuidado Constantine decide tirar umas férias em Nova York. A aparente segurança em que se encontra o leva a cair numa armadilha preparada por Meia-Noite (personagem remanescente da fase de Jamie Delano) e passa um tempo numa versão particular do Inferno. Quando consegue se recuperar e voltar à Inglaterra e depois de dois interlúdios, sendo visitado pelo fantasma de Brendan Finn e retomando sua amizade com Chas, começa o fim.

Astra, a menina que John fracassara em exorcizar anos atrás em Newcastle, alia-se ao Primeiro dos Caídos, tentando fazer com que este conseguisse levar a alma de Constantine para o Inferno. Enquanto o Demônio coloca seu plano em prática, George, irmão de Dez (assassinado em Medo & Repugnância), é o estopim de uma revolta que toma um dos bairros de Londres.

Hellblazer, capa de Glen FabryParalelamente, John decide ajudar uma ex-namorada viciada a se recuperar e se livrar de seu cafetão, e Kit retorna a Londres para se despedir uma última vez de Constantine. O Primeiro dos Caídos, no entanto, consegue, um a um, eliminar os possíveis aliados de John, começando pelo padre Rick, seguido por Nigel e, finalmente, o Esnobe. Antes, ele descobrira que o Segundo e o Terceiro não eram seus "irmãos", apenas diabos normais, e os exterminou. Quando se encontra com Constantine, cara-a-cara, ele devolve o câncer de pulmão e, enquanto John agoniza em dores, o Primeiro conta sua história, como fizera com o padre de A Confissão.

Infelizmente, John é cínico demais para cair naquela conversa toda e diz algumas verdades óbvias para o Primeiro. Pego de surpresa, ele acaba sendo morto - se é que o Diabo pode morrer - por sua cúmplice Astra, que se revela, na verdade, ser Ellie disfarçada. Em Meninos & Meninas, Constantine havia talhado um símbolo na alma de Ellie, que a esconderia do Primeiro. Por isso, ela pôde se aproximar dele, e levar a cabo o plano do mago.

Como pagamento, além de matar o Primeiro, Ellie remove o câncer do pulmão de John. Ao fim de Um Patife Nos Portões do Inferno, Constantine volta a ser o mesmo de sempre, sem câncer, sem uma pseudo-imortalidade, sem namorada e ainda sem caráter.

O que Ennis fez, então, foi basicamente o afirmado no inicio do texto: pegou o personagem, criou uma mitologia praticamente fechada ao seu redor, enriqueceu sua história pessoal e, depois, o devolveu a Vertigo/DC no mesmo estado em que o encontrara.

Para mim, essa é a forma ideal de se trabalhar com qualquer personagem, porque evita que o roteirista acabe perdendo a energia de escrever o mesmo e fique anos e anos remoendo-o indefinidamente. Como Howard Mackie vem fazendo no Homem-Aranha...

Rodrigo "Piolho" L. Monteiro, ddisse que, depois dessa overdose de criaturas sinistras, vai escrever uma coluna sobre os Ursinhos Carinhosos para o mês que vem. Não sei porque, mas isso nos causa mais medo ainda...

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