Confins do Universo 202 - Guerras Secretas: 40 anos depois
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Renasce um sonho

1 dezembro 2001

Superman #166Pense em qual pode ser a maior polêmica entre os fãs de super-heróis. O já saturado debate onde se confrontam, de um lado, os fãs do Lanterna Verde da Era de Prata, Hal Jordan e, de outro, os entusiastas de seu sucessor, Kyle Rayner, que ocorre desde a introdução deste último, seria um forte candidato.

Contudo, apesar de menos evidente, o descontentamento dos seguidores do Super-Homem tradicional contra a versão do personagem introduzida, em 1986, por John Byrne, pode ser ainda mais forte. Para tal facção, o que o autor apresentou ao mundo foi um anti-Homem de Aço, sendo apócrifas as histórias publicadas nos anos que se seguiram. A discussão envolve não só fãs, como também diversos profissionais, ainda que ocultados pelo poder editorial.

Seu representante máximo na Internet, hoje, é o site Superman Through the Ages!, um admirável tributo à trajetória do herói desde sua criação. E, ao que parece, estão próximos de ter conquistado sua vitória decisiva. Superman #166, escrita por Jeph Loeb e desenhada por Ed McGuinness, causou impacto recente ao apresentar uma versão do planeta Krypton semelhante à existente na Era de Prata, alterando assim a origem do Homem de Aço e mostrando que o Krypton de John Byrne era uma fraude.

Superman #1Por ser uma mudança tão radical, leitores mais novos, na sua maioria, foram contra. Alguns acham que é apenas mais um mega-evento, como tantos outros, seguindo o modelo de A Morte do Super-Homem, onde as alterações, geralmente, acabam desfeitas. Mas uma análise atenta revela que há algo mais. Tudo estava claro desde uma singela página da primeira saga escrita por Jeph Loeb na revista mensal do Super, publicada aqui em Superman # 1, pela Editora Abril.

Byrne, na época um dos mais destacados artistas do meio, foi contratado para revitalizar o mito do Super-Homem, tendo recebido liberdade criativa praticamente ilimitada para tanto. Sua idéia básica era criar um Super-Homem que fosse mais homem e menos super; que tivesse seus poderes reduzidos; e que se considerasse não um kryptoniano, mas um terráqueo, pois assim seria mais fácil os leitores se identificarem com o personagem.

Além disso, apresentou um planeta Krypton inteiramente novo. Antes de entrar nesse mérito, porém, viajemos de volta às origens, para analisar o significado primordial do planeta perdido. Em The Origin of Superman, publicada em Superman #53, de 1948, Krypton é visto em poucas páginas como um mundo de humanos dotados de elevado nível de inteligência e perfeição física. Em Superman's Other Life, de 1959, Kal-El tem a chance de vislumbrar como seria sua vida seu planeta, se ele nunca houvesse explodido: desfrutaria das maravilhas oferecidas por uma superciência e tornar-se-ia, lá também, um herói.

Primeira aparição da SupermoçaSuperman's Return to Krypton, de 1960, mostra o Homem de Aço retrocedendo no tempo e efetivamente experimentando a vida em seu planeta natal, convivendo com seus pais biológicos, Jor-El e Lara, e envolvendo-se com a atriz Lyla Lerrol (nota do UHQ: novamente, uma mulher com os dois nomes iniciados com a letra "L", como Lois Lane, Lana Lang e Lori Lemaris). Crescia sua ligação afetiva com Krypton, juntamente com a dor de sua perda. Histórias narrando retornos ao seu planeta natal tornaram-se cada vez mais freqüentes, e este era sempre visto como uma civilização avançada em todos os aspectos, uma visão utópica de tudo o que a Terra poderia se tornar, caso o único filho de Jor-El guiasse corretamente a humanidade. O ciclo era fechado com a participação de Kal-El, ainda jovem, como Superboy, na Legião dos Super-Heróis (grupo do século XXX, inspirado por sua lenda, introduzido em Adventure Comics #247, de 1958), fazendo dele um herói também num futuro utópico, resultante de seu próprio exemplo heróico.

Mundo de KryptonEntre os demais sobreviventes de Krypton, havia a Supermoça, os habitantes da cidade engarrafada de Kandor, e os criminosos da Zona Fantasma. Na visão de Byrne, a existência de tais personagens tornava o Super-Homem menos único. Em sua reformulação, não haveria outros kriptonianos vivos. As mudanças presentes no especial Mundo de Krypton, lançado no Brasil em 1988, no entanto, foram ainda mais dramáticas.

A história era permeada por total degradação humana, guerras e desolação. Os habitantes do Krypton "byrneano" haviam sido consumidos por seu avanço científico, desprovido de ética, no campo da clonagem. As batalhas decorrentes dizimaram a maior parte da população. Quando o planeta finalmente explodiu, era povoado por uma civilização dedicada apenas ao estudo contemplativo da ciência, onde as emoções eram contidas e os relacionamentos físicos, abominados.

Byrne retomou o tema na história publicada por aqui em Superpowers #16, de 1990. Auxiliado pelo Gavião Negro e Mulher-Gavião, o Super-Homem visita o local no espaço onde Krypton se localizava. Começa, então, a sofrer alucinações, mostrando o que aconteceria se outros kryptonianos tivessem vindo para a Terra; e assistimos a um cenário sombrio, em que os terráqueos são violentamente subjugados. O novo Krypton era uma distopia, não mais um símbolo do que o Super-Homem deveria lutar para que a Terra se tornasse, mas daquilo que ele deveria evitar que acontecesse.

Super-Homem versus Apocalypse: A RevancheRoteiristas posteriores acrescentaram a figura do Erradicador à nova mitologia kryptoniana. Tratava-se de um artefato ancestral, criado com o propósito de preservar viva a herança de Krypton, a todo custo. Começou a afetar a mente do Super-Homem, tornando-o um ser cada vez mais frio e distante dos próprios sentimentos. Na conclusão da saga O dia do Kryptoniano, seu lado humano foi mais forte, e ele conseguiu vencer a influência do artefato, lançando-o no sol. O Erradicador retornou, desta vez como humanóide, numa saga subseqüente, e tentou remodelar a Terra inteira, confrontando novamente o herói. Já em Super-Homem versus Apocalypse: A Revanche, Clark descobre que a criatura que o matara era fruto de experimentos genéticos kryptonianos.

A tendência de Byrne em escrever um Super que fosse menos poderoso esteve presente desde a capa da primeira edição da nova série mensal, Superman #1, de 1987, na imagem de um combalido Super-Homem, que agonizava diante do vilão Metallo. Para que suas histórias conseguissem maior efeito, o novo Homem de Aço enfrentaria ameaças em escala menos cósmica, e já não teria mais força capaz de mover planetas; não seria dotado de superinteligência; e não mais conseguiria quebrar a barreira do tempo numa velocidade superior à da luz. O novo Lex Luthor seria um empresário corrupto intocado pela lei, e o Super não conseguiria detê-lo. Os poderes remanescentes ganharam novas explicações científicas. Sua invulnerabilidade passou a ser uma aura bioquímica, e uma espécie de telecinésia tátil (semelhante à do atual Superboy) explicava sua capacidade de carregar artigos de grande porte, como o navio de Super-Homem #40, sem que estes se partissem.

ErradicadorA atitude mais drástica, porém, veio na última saga escrita por Byrne, publicada aqui em Superpowers #17. Tendo fracassado ao tentar evitar que os três criminosos kryptonianos, de um universo compacto, exterminassem por completo a vida na Terra de tal dimensão, o Super decide executá-los, estando eles já derrotados e sem poderes. Foi o início de uma fase de tormento mental para o personagem, que o levou a, inconscientemente, a assumir uma terceira identidade e, pouco depois, exilar-se no espaço.

Os sucessores de Byrne construíram um período de expansão da lenda renascida, mas as limitações do novo paradigma continuavam presentes. A saga Perdido no Tempo, por exemplo, onde o Super passa por diversas épocas, da pré-história ao século XXX, terminou com o herói descobrindo-se incapaz de evitar a destruição da lua no futuro. Para Dan Jurgens, o mais importante criador do período, o que o Super não consegue fazer é sempre mais interessante do que aquilo que ele consegue.

DC Um MilhãoCuriosamente, a ênfase num Super-Homem mais poderoso e em suas realizações fantásticas retornou fora de suas revistas mensais, em 1996, na mini-série Reino do Amanhã, de Mark Waid e Alex Ross, e em JLA, a atual série da Liga da Justiça, reiniciada por Grant Morrison. Este último, aliás, alcançou o ápice em DC Um Milhão, de 1998, que reinventou o antigo ciclo que ligava Superboy ao século XXX da Legião dos Super-Heróis, elevando-o à enésima potência, pois a nova ligação era do Super-Homem com o século 853, o mais magnificente dos futuros utópicos, onde um descendente do Super lidera a Legião da Justiça A; e o próprio Homem de Aço original, vivendo no sol, após um sem número de gerações heróicas que o seguiram, empreenderia um retorno comemorativo. Quando isso ocorre, no capítulo final da saga, o próprio planeta Krypton é trazido de volta à vida e, mesmo tendo sido a versão de John Byrne, a expressão de seus nativos era de deleite.

Aquele, portanto, era o Krypton "byrneano", apenas na aparência. O primeiro sinal de que a versão clássica do planeta não havia sido esquecida, no entanto, veio numa revista satírica. Em Sérgio Aragonés Destrói a DC, temos o artista tirando sarro dos principais personagens da editora em sua versão contemporânea; Jor-El e Lara, porém, apareciam em suas versões clássicas.

Em 1999, novas equipes criativas, encabeçadas por Jeph Loeb e Joe Kelly, assumiram os títulos mensais do Homem de Aço. Loeb conquistou tal espaço, devido à total aceitação da mini-série Super-Homem: As Quatro Estações, que, apesar de ter sido uma história intimamente pessoal, por tratar da mudança de Clark de Pequenópolis para Metrópolis, deixava clara a grandeza do personagem através de texto e imagens de puro lirismo, ao narrar a história do ponto de vista de Jonathan Kent, Lois Lane, Lex Luthor e Lana Lang.

Seu trabalho na revista mensal deveria seguir a mesma linha. Releia a página 9 do segundo capítulo de sua história em Superman Premium #1, narrada por Lois, que mostrava o Super treinando com o filho de Mongul para utilizar seus poderes de forma menos autocontida. "Clark sempre se preocupou com seus poderes. No passado, ele avaliava suas limitações. Suas fraquezas. Hoje ele começa a estimar o oposto." Pensamentos que refletiam a situação apresentada, mas que também serviram como um aviso de que a revista e o personagem já não estavam mais sob o comando dos seguidores de John Byrne; e que o paradigma daquela fase seria definitivamente rompido. Nada foi dito sobre Krypton. Mas era somente questão de tempo.

Byrne sempre afirmou que sua reformulação deixou o Super mais próximo da versão original de Siegel e Shuster do que ele havia estado durante os últimos tempos. De fato, o Homem de Aço das primeiras histórias estava longe de ser um deus kryptoniano, capaz de mover planetas - saltava edifícios, mas não voava; e ainda não era totalmente invulnerável. Se Byrne iria recontar a trajetória do personagem começando do zero, uma redução no nível de poder era lógica. Mas faltou-lhe equilíbrio.

Em última instância, o diferencial não é se o Super pode ou não mover um planeta. O mesmo conceito pode obter diferentes resultados. Siegel e Shuster criaram um Super-Homem que ainda não era tão poderoso, mas estavam determinados a apresentar um herói que fosse maior que todos os outros de todos os tempos. Uma sensação de grandeza incomparável. E assim foi com grande parte dos artistas que os sucederam, gradativamente ampliando seus poderes e criando toda uma mitologia ao longo das décadas.

Mas Byrne sempre pareceu preocupado em dar explicações sobre a natureza do personagem em sua reformulação, como se algo não pudesse ser naturalmente tão nobre. Pessoas acreditam em super-heróis porque crêem nelas mesmas, dizia Jack Kirby; e o trabalho de Byrne parece marcado por uma falta de fé no espírito humano. Não nos preocupamos com explicações científicas em nossos sonhos e aspirações. A própria idéia de alguém querer uma resposta de por que um herói não mata já é uma atrocidade, e a saída adotada por Byrne mostra que ele estava mesmo deslocado.

Já a ciência dos superpoderes apenas diminuía sua magia. Sob a pena de Jeph Loeb, uma diferença pode ser sentida em cada página. Temos um escritor que ama o mito do Super-Homem, e acredita em tudo o que ele representa. Uma sensação de otimismo e a vontade de fazê-lo cada vez maior. Ainda temos dramas e conflitos interessantes - Lex Luthor, como presidente dos Estados Unidos, está agora mais forte do que nunca - mas o saldo é intensamente positivo. As imagens de Krypton em Superman #166 levam nossa mente a desejar conhecê-lo, e os sentimentos da família El são cativantes. Super-Homem é novamente o que sempre deve ser. Um sonho bom.

Marcus Vinicius de Medeiros estava, um dia desses, olhando para o céu. Foi quando levou um susto! O que era aquilo, voando? Um passáro? Um avião? Então ele lembrou que estava sem óculos. Rapidamente, colocou os dito-cujos, e teve uma enorme decepção. Era somente um passáro, mesmo!

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