Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
OUÇA
Matérias

Super-heróis e superpoderes na Ficção Científica

30 agosto 2003

Superpoderes são um tema clássico na literatura de ficção científica, fruto de seus momentos iniciais nas revistas pulp norte-americanas, por volta da década de 1930. Era uma época de apreensão e desesperança, que se seguia ao crack da bolsa de Nova York, abalando o mundo inteiro. Enquanto isso, na Europa o descontentamento do povo alemão com as condições que lhes foram impostas desde o armistício da sangrenta Grande Guerra européia era crescente; e emergia a doutrina nazista do super-homem ariano, que nos afetaria ainda mais.

LensmenNaqueles tempos, era comum os autores americanos do gênero elegerem um herói para salvar o universo e para dar conta do serviço. Esse personagem era dotado de uma série de talentos surpreendentes, e os garotos cheios de espinhas identificavam-se sobremaneira. Isso facilitou o estabelecimento definitivo da ficção científica na indústria cultural dos Estados Unidos.

Edward Elmer Smith, ou "Doc" Smith, foi um desses autores e, provavelmente, o que melhor aproveitou o tema do super-homem em suas space operas (aventuras heróicas espaciais, com toques militares e monarquistas), entre elas o supra-sumo do super-heroísmo, a série de novelas Lensmen, que influenciou toda uma geração de leitores.

Também foi durante os anos 30 que surgiram os primeiros super-heróis nas tiras de quadrinhos, e muitos consideram que esse fenômeno foi unicamente decorrente da depressão americana. Mas a literatura "pulpesca" já estava desenvolvendo o tema há alguns anos, e não seria errado dizer que foi ela a maior influência para o surgimento dos super-heróis entre os personagens dos comics.

Com o desenvolvimento da tecnologia e a democratização da informação, notadamente depois da Segunda Grande Guerra, a ficção científica americana evoluiu, lapidando-se em facetas múltiplas.

O Homem InvisívelO tema do superpoder também mudou, adquiriu contornos realistas nas ficções eminentemente científicas (a hard fiction, sucessora direta das space operas) e, principalmente, na fase New Wave, quando assumiu o fardo pesado da culpa pelas tragédias de Hiroshima e Nagazaki.

O superpoder não era mais uma ficção, estava literalmente na ponta dos dedos, e o resultado de seu uso não era bonito de se ver.

Desde então, o super-herói não teve mais espaço na ficção científica de alto nível. Os superpoderes, num livro do gênero que se leva a sério, estão invariavelmente relacionados com o lado mau do ser humano. Mas isso também não era novidade. Já no clássico O Homem Invisível, de H. G. Wells, o protagonista é um vilão assumido. E no não menos relevante O Médico e o Monstro, de Robert L. Stevenson, Dr. Jeckyll é, ao mesmo tempo, herói e vilão. Muito sofisticado.

Dr. Jekyll and Mr. HydeO Novo Adão, de Stanley G. Weinbaum, também antecipou o conceito em pleno contexto da ficção científica pulp ingênua e positivista. O romance trata do surgimento de um mutante - tal como em X-Men - num novo salto evolucionário. Mas ele não se torna um super-herói, e usa seus poderes exclusivamente para proveito próprio. Por isso, e por muitos outros motivos, o autor foi coberto de elogios rasgados de grande parte dos seus colegas contemporâneos, e até hoje é reverenciado como um dos maiores visionários da FC.

No romance O Homem Demolido, de Alfred Bester, policiais telepatas levam um baile do "herói" criminoso. Em outro trabalho do escritor, Tigre! Tigre! - uma versão futurista do clássico O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas - o protagonista, único sobrevivente numa nave destruída, desperta um superpoder surpreendente, que é o tema central da história. Mas se ele é herói ou vilão, depende da interpretação do leitor.

O Homem DemolidoJá no romance Além de Humano, Theodore Sturgeon apresenta um grupo de mutantes jovens que, quando juntos, tornam-se uma superinteligência. Em Idoru, de William Gibson, o protagonista tem a capacidade de identificar padrões em qualquer seqüência aleatória e interpretá-los para prever o futuro.

Em Fundação, Isaac Asimov criou uma sociedade que pode manipular o futuro, mas surge um mutante, o Mulo, que é absolutamente imprevisível e faz desmoronar o império intergaláctico.

The Foundation TrilogyO Senhor da Luz, de Roger Zelazny, conta a história de um planeta onde uns poucos humanos, que lá chegaram há séculos, dominam o povo local como deuses do panteão hindu, imortais, com seus atributos e poderes. E também lutam entre si, inimigos que são, em batalhas apocalípticas.

Em O Planeta do Rio, de Phillip José Farmer, todos são imortais. Em O Planeta dos Dragões, de Anne McCaffrey, os dragonriders podem deslocar-se pelo tempo sem máquinas.

No entanto, cabe elaborar um comentário mais detalhado a respeito de duas obras seminais que tratam dos superpoderes.

Um Estranho Numa Terra EstranhaNo romance mais prestigiado de Robert A. Heinlein, Um Estranho numa terra estranha, de 1961, Smith é um alienígena-humano (nascido em Marte e criado por marcianos) e tem uma coleção de supercapacidades. Mas ele escolhe ser humano, apesar de poder ser muito mais do que isso. Desse modo, consegue ser mais humano do que jamais poderemos ser. Por isso, não merece o perdão dos homens. Esta obra é uma das chaves para entender a questão do poder.

Dune, de Frank HerbertEm Duna, de Frank Herbert, há vários momentos em que a trama esbarra em capacidades humanas alteradas. Há os navegadores da Guilda, os dançarinos faciais, as bruxas Bene Geserits e o próprio Muad'ib. Uma leitura superficial e apressada vai sugerir a idéia que Paul, o jovem e bem intencionado herdeiro do Duque Leto da casa dos Atreides, é um super-herói. Sua luta para libertar os Freemen - o povo dos desertos infinitos de Arrakis - da tirania do Barão Arkonen, leva o leitor a compactuar com ele.

Mas ocorre que o bem nunca é um conceito isolado do mal. A leitura de Duna deve ser feita com cuidado, para não se incorrer no erro de aceitar o messianismo como algo do bem por definição, apenas porque parece ser dirigido por Deus.

Para uma visão mais clara, pois Duna é mesmo muito ambíguo (e essa é uma de suas grandes qualidades) é aconselhável ler os demais livros que lhe sucedem para encarar o mal que Muad'ib e seu sucessor, o Imperador-Deus, causaram a Arrakis. E, depois, sentir-se culpado. É um sentimento inusitado.

Carrie, de Stephen KingUm dos autores modernos que mais abordou o tema dos superpoderes foi Stephen King. Mais conhecido por suas histórias de terror, ele também é um ótimo escritor de ficção científica, dono de uma técnica narrativa envolvente e mestre no desenvolvimento de personalidades profundas, coisa rara na FC em geral.

King tem a habilidade ímpar de criar personagens mais palpáveis que os nossos vizinhos e que muitos de nossos colegas de trabalho. Carrie, seu livro de estréia, é exemplar nesse aspecto. Não é exatamente uma história de FC, uma vez que os poderes da pobre Carrie têm características sobrenaturais. Mas a mesma inversão que observamos em Duna é mais explícita em Carrie, pois, ao longo da narrativa, o leitor compactua com a protagonista num primeiro momento, porque está mortificado de pena pela garota nerd. Mas, quando percebe que tantos os maus quanto os inocentes são castigados indiscriminadamente, bate uma sensação muito estranha.

O Senhor da LuzO mesmo ocorre em A Incendiária, outro romance de King, esta uma história típica de ficção científica, na qual a dualidade bem/mal dos poderes da menina e de seus pais fica mascarada pela inocência da criança. Mas quando o leitor visualiza a cena final da menina assumindo a plenitude de seu destino, sente um frio estranho na espinha: é tarde demais para nós, pobres mortais. Sabe a mitologia lovecraftiana: a humanidade não sobreviverá quando os antigos voltarem a vagar sobre a Terra.

Muita gente se pergunta por que não há romances com super-heróis. Há alguns anos, a Editora Abril publicou no Brasil uma série de livrinhos com contos e noveletas com os personagens de quadrinhos Batman, Superman, Mulher-Gato e Homem-Aranha. Alguns dos autores são conhecidos dos leitores de ficção científica e muito prestigiados no meio, mas nem isso permitiu que o resultado passasse de medíocre.

O que acontece não é que a literatura não aborda o tema do superpoder. Ela apenas não acredita em super-heróis.

Qualquer ser humano que tiver superpoderes certamente irá usá-los para suprir suas necessidades e desejos particulares, independente se isso for ou não moralmente correto. Afinal, numa lógica tipicamente dos homens, se Deus deu o poder, é para ser usado, e qualquer regra meramente humana deixa de ser aplicável.

Na fantasia dos quadrinhos não existe essa complicação. O super-herói está sempre certo por definição, decide pelo bem e nunca erra. Em sua oposição há o supervilão, contra o qual ele está divinamente autorizado a usar a totalidade de seus dons.

Isso acontece porque as histórias são propositalmente rasas e inconseqüentes, para não permitir desdobramentos dramáticos para além das fronteiras estritas da própria aventura, com o subseqüente questionamento moral por parte dos leitores. Duvidar da honestidade do super-herói pode ser muito ruim para os negócios.

Ainda assim, foram produzidas algumas poucas histórias em quadrinhos que resvalaram esse terreno perigoso, como a famosa e multipremiada série Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons; Marvels, de Kurt Busiek e Alex Ross; e Cavaleiros das Trevas 2, de Frank Miller.

O super-herói ingênuo da era pulp ainda sobrevive nas histórias em quadrinhos e no cinema, uma fantasia infantil decadente que se acredita um arquétipo. E para a literatura em geral, os arquétipos são valiosos, mas o super-herói é, no máximo, um estereótipo.

Cesar Silva tem 44 anos, é publicitário, designer, quadrinhista, cartunista, e, desde 1983, editor do fanzine Hiperespaço, especializado em ficção científica.

 

Já são mais de 570 leitores e ouvintes que apoiam o Universo HQ! Entre neste time!
APOIAR AGORA