Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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The Birth Caul: apenas uma membrana? Não para Alan Moore!

1 dezembro 2001

Alan MooreEstava lendo o número mais recente do gibi do Homem-Aranha. Quase no automático, sem pensar muito, arrastei meus olhos cansados por 160 páginas de vazio. Certamente desiludido com as histórias em quadrinhos industriais, resolvi procurar algo diferente, que me reanimasse, alguma coisa que me lembrasse da paixão que sinto pela arte seqüencial (a verdadeira, não o produto das sweatshops pessoais de escritores e desenhistas que trabalham sob contrato, sem participar de forma alguma no lucro resultante de suas histórias e, talvez por isso, não se dediquem a entregar arte, mas qualquer coisa que se passe por isso - ou simplesmente não tenham mais o frescor de anos idos, ou o talento necessário).

Nada melhor que fazer isso de vez em quando. Fuçar nas estantes à procura de algo inusitado, que já tenha sido lido uma, duas, várias vezes e que, mesmo assim, sempre proporcione uma aventura nova, uma interpretação diferente.

Apanhei a edição em preto e branco, de mais ou menos 48 páginas, e me debrucei sobre ela. O título em letras brancas de caixa alta é um tanto menor que os outros nomes (dos autores) na capa. Quero falar um pouco de um deles. Suas opiniões a respeito de arte são fundamentadas, acadêmicas até. Já foi dito que ele é culto demais para os quadrinhos. E sou obrigado a concordar. Pero no mucho. Sem ele eu não teria garantia de minha dieta de qualidade em se tratando de HQs.

O nome? Moore, Alan Moore.

De todas as alternativas, de todos os significados, de todas as interpretações, Alan Moore decidiu-se por uma trajetória não usual para sua carreira de escritor. Ele resolveu que não faria de suas histórias uma indústria, uma mídia (falo de mídia como suporte, não como obra), mas sim arte. Nada mais puro e simples.

"Óbvio", você pensa, "ele é um escritor, logo, um artista". Eu discordo. Alguns escritores (de quadrinhos, principalmente) não passam de datilógrafos. E todos sabemos que datilografia (ou digitação) não exige raciocínio, inspiração e talento. Mas arte...bem, há volumes suficientes discorrendo sobre o assunto para gastar seu tempo com isso. O que quero dizer é fácil de entender. Moore, o "Bruxo de Nortahmpton", encara a arte de maneira um bocado peculiar. Veja só a sua opinião:

"Toda a arte e impulso criativo humano devem ter dado seus primeiros passos dentro da esfera da magia, sendo percebidos, em primeiro lugar, como tal".

BirthCaul"As raízes da arte são distantes e obscuras. Os primeiros poemas, danças, imagens e sons estruturados não foram registrados exceto em lendas e tradições; na nódoa ocre na parede de uma caverna que, de certa forma, era a espinha curvada de um bisão para sua audiência inicial. Não podemos mais calcular o impacto que esses saltos de abstração devem ter tido sobre a mente paleolítica: os súbitos significados pelos quais se apreendia um campo de pensamentos e conceitos novo e fabuloso, tão verdadeiro e imediato quanto os caminhos sujos e abarrotados percorridos pelo homem primitivo diariamente, talvez menos substancial e, assim,
menos vulnerável ao tempo e às estações".

"A primeira codificação da dura realidade pessoal do homem primitivo em sons e símbolos deve ter oferecido um poder de comunicação alienígena e sem precedentes ao seu usuário, talvez equivalente ao que a telepatia pareceria para nós. O primeiro a captar alguma verdade inata do mundo humano dentro das linhas de um desenho ou da dança propeliria sua audiência através de um plano de compreensão e percepção diferente, mais extremo do que os efeitos de qualquer droga. Os desenhos nas paredes das cavernas de Lascaux, independentemente de qualquer significância ritual que pudessem ter, são em si mesmos um ato de magia. Para aqueles que não tinham o conceito prévio de uma imagem manufaturada, deve ter parecido que animais saltitantes foram conjurados em carne e osso e manifestaram-se dentro da própria caverna".

"Se esta parece uma interpretação extrema de nossa primeira resposta para a arte, considere um exemplo posterior: quando Winsor McCay, um artista creditado com a invenção do desenho animado, exibiu pela primeira vez seu protótipo Gertie, the dinosaur, em 1914, a reação da
audiência foi instrutiva. Sem o aparato perceptivo necessário para aceitar a noção de um desenho de animais, a maior parte da audiência, ao contrário, acreditou que estava testemunhando a aparição de um dinossauro real, de carne e osso sobre o palco diante dela".

A magia é conhecida tradicionalmente como "A Arte".

Para Moore, a linha divisória entre uma e outra é imperceptível. Magia e arte implicam percepção. Uma obra de arte tem como função principal modificar a maneira como seu "leitor" (por falta de palavra mais adequada) percebe o mundo. Pegue como exemplo Watchmen.

Nessa história percebemos o poder de desconstrução do autor e, também, a engenharia por trás do espetáculo, a construção de um fractal fabuloso que, como poucas obras literárias de nosso tempo, resiste a uma segunda leitura e a infinitas leituras posteriores, sempre revelando algo novo e não notado anteriormente, talvez, devido à própria percepção despreparada do leitor. Outro exemplo magnífico é o filme Magnólia, talvez o equivalente cinematográfico da estrutura aparentemente caótica de Watchmen. Se você mergulhar em uma dessas obras e sair exatamente como entrou, algo está faltando.

Mais Moore:

"Em um certo ponto de seu desenvolvimento, o artista e o xamã (Nota do UHQ: Xamã é a denominação dada a um chefe místico indígena) são indivisíveis, ambos tirando algo do mundo invisível dos conceitos e idéias e dando-lhe forma".

Segundo Dave Sim, Moore (48 anos), ao invés de passar pela crise da meia idade, reinventou a si mesmo como xamã. O xamã é responsável, entre outras coisas, pelo bem estar de sua comunidade apesar de não estar inserido nela, de viver marginalmente. Com isso em mente e em
colaboração com os músicos Dave J. e Tim Perkins, Moore "tentou" construir um processo e um contexto para a arte performática e poética que fizesse uso do modo xamânico de ver o mundo para dirigir sua audiência através de uma paisagem mental estruturada para um nível diferente de consciência, pré-determinado pelo próprio autor.

"Mas...mas esta coluna não trata de quadrinhos?".

Sim e não. O objetivo da Entre: quadrinhos sempre foi falar, sim, a respeito do que está acontecendo de interessante no mundo dos quadrinhos, mas, também, abordar o que ocorre, o que existe entre um painel e outro numa página, o quê o autor lê, ouve, assiste, enfim, o que o inspira para a construção de uma história... Além disso, e não menos importante, o que ele faz quando não está produzindo quadrinhos. No caso de Moore, performances objetivando a elevação da consciência de sua comunidade. É o modo xamanístico de prevenir o contágio e a doença.

Assustado?

Relaxe. Vamos falar de quadrinhos. Moore escreveu Brought to Light (graphic novel ilustrada por Bill Sienkiewicz, que aborda o mundo das sombras da Agência Central de Inteligência - CIA) que se tornaria a base de sua primeira performance. Isso mesmo. A primeira apresentação performática de Moore (gravada em CD) foi adaptada de uma HQ. Mas ainda não havia chegado o momento descrito por Dave Sim.

Posteriormente, em 1995, realizou sua segunda performance: The Birth Caul, adaptada para os quadrinhos por Eddie Campbell e publicada em 1999. É a respeito dessa obra que estou escrevendo desde o começo. Foi esse o livrinho que apanhei para reler e que restituiu meu interesse em blábláblá...

Primeiro, o básico: The Birth Caul pode ser traduzido como coifa (membrana que envolve a cabeça do feto ao nascer).

"Este pedaço de placenta, como muitos outros fenômenos irregulares da natureza, é um arcano impregnado de valores interpretativos, ocorrendo no momento da vida vir à luz; através de um tipo de magia simpática, a coifa se tornou um símbolo de boa sorte e, assim, um artefato de valor
xamanístico: no folclore inglês a coifa, se guardada, trará proteção contra o afogamento e proporcionará a viagem segura de qualquer navio no qual seu possuidor esteja. Se o seu dono se tornar um advogado, ele terá eloqüência e sucesso em sua profissão. No folclore holandês, a pessoa nascida com a coifa recebe o poder de ver fantasmas. Nos folclores escocês e islandês, ela carrega o poder da segunda visão e concede proteção contra a bruxaria e o encanto das fadas", disse Ben Ponton.

Para Alan Moore, a coifa é a peça central para a construção de uma de suas visões artísticas mais ambiciosas. Ele a vê não somente como um símbolo de nascimento, mas de todas as coisas.

Do frontispício da obra:

"A coifa, gradualmente desdobrada, é um farrapo frágil, um mapa perdido, com esses traços esmaecidos e esboçados como veias, a ser restaurado. A membrana descamada mapeia um continente monstruoso e esquecido, cada salpico de sangue materno um arquipélago. Ela é um cartão postal amarrotado de um estado desaparecido, sua mensagem escrita em uma língua
antiga, não totalmente decifrada. A coifa documenta uma Atlântida pessoal, um tempo de sonhos pré-verbal, um estado xamanístico ingênuo, rico em totens abandonados; dança e fogo não lembrados; as assinaturas floreadas de demônios medievais aparecem através de rabiscos de giz na parede do parque."

"A escuridão sem um brinquedo".

Alan MooreCom o subtítulo de A Shamanism of Childhood (Um xamanismo da infância), o livro de Moore e Campbell começa com a narração da doença e morte de Sylvia, mãe do escritor, e a posterior descoberta, entre seus pertences, de uma coifa (aparentemente, um dos tios do autor nasceu com ela). Óbvio que Campbell aproveita Moore como personagem-narrador e o retrata fielmente.

Logo após, há uma ruptura desse segmento, entremeada, novamente, com a participação de Moore, dessa vez no momento inicial da performance. A cabeleira arturiana caída sobre os ombros, braços e rosto (o que se pode ver dele) cobertos por símbolos xamanísticos. E ele fala:

"Neste presente momento" (e é como estar lá, na audiência, junto a um grupo de privilegiados), e prossegue sua narrativa, até que um de seus espectadores é destacado do grupo, como se o que Moore diz fosse dirigido especificamente a esse indivíduo. Ele passa a ser, então, o foco narrativo, a visualizar o que é dito pelo performer, a incorporar a fala dele à sua própria vida, tendo apenas flashes esparsos de onde está realmente, vendo Moore, dantesco, atrás das rodas de duas bicicletas, ladeado por um carrasco-juiz que traz a forca em sua mão.

Este homem escolhido está sendo julgado. Sua carreira como administrador de empresas é mostrada. Ele é uma alma perdida, cuja face de palhaço esconde uma identidade incompleta, apenas esboçada. O leitor tem a oportunidade de bisbilhotar em sua vida patética, seus relacionamentos sem significado, seu local de trabalho sufocante e degradante, tudo isso seguido do refrão "Nós trabalhamos e dormimos, trabalhamos e dormimos. Fim de semana. Esqueça isso tudo. Divirta-se".

Essa rotina, no entanto, acaba abruptamente, quando o homem sofre um ataque cardíaco ou um colapso nervoso. Seu relógio fragmentou-se. "Não há caminho adiante. Nós devemos reverter a ação. Devemos reverter a obtusa máquina do mundo". E assim é feito. Aos dezessete anos, o homem confronta um futuro de potencial infinito, mas se encontra impregnado por superficialidade, falta de autoconhecimento e covardia. A paixão fugaz da sexualidade é seguida por desilusão. Sua educação o prepara para "pontualidade, obediência e a aceitação da monotonia... estas são as habilidades de que precisaremos mais tarde na vida".

Traumatizado por seu primeiro emprego, ele começa a entender a tristeza dolorida nos rostos de seus pais; encontrando uma fotografia antiga de ambos quando tinham sua idade, ele começa a compreender o que o espera adiante. Mas ele não entende que atrás dele uma onda gigantesca de
mudança está se elevando, preparando-se para engolfá-lo.

Birth CaulAos dez anos, o menino (sim, ainda é o homem) está imerso no aprendizado da linguagem e sendo mudado por isso. Ele atravessa um período no qual perderá a irmã mais velha num acidente de trânsito e começará a se interessar por meninas. Ele olha fixamente para uma língua de boi em exibição na vitrine do açougue, um símbolo palpável de como sua capacidade de expressar-se será "cortada, enfeitada, preparada para o consumo público". Linguagem substitui realidade e ele é apenas vagamente capaz de lembrar o tempo em que estava em contato com as coisas propriamente ditas. Mas conforme sua jornada ao contrário passa através de sua infância, ele é novamente imerso na experiência verdadeira e crua. Uma prateleira fora de seu alcance, a rosca em forma de borboleta segurando uma perna de mesa, o tufo de algodão arrancado de um colchão, todas essas coisas são eventos fascinantes em sua vida pequenina.

A criança primeiro vem a entender o significado da morte, e imagina quem ela é e de onde veio. A jornada inversa continua, e nosso personagem encontra-se novamente no útero, um feto enroscando-se em si mesmo, caindo, voltando através dos estágios evolucionários até a concepção. Daí em diante ele volta a reunir-se com o universo.

É óbvio que uma simples descrição da história não acrescenta nada à rica paleta de linguagem que Moore utiliza... ela faz a viagem valer à pena. Seu poema está vivo com ritmos sedutores e repetições fiéis. Ele trespassa seus temas amplos com descrições que parecem pinturas. Sua
visão abrange tudo. A visualização complexa de Campbell é totalmente engajada, dependente mesmo, do texto; de fato, ela é crucial para a interpretação do poema. É assim especialmente na última seção da história, quando Moore usa a sintaxe desnorteante de uma criança ainda aprendendo a falar... sem as ilustrações astutas de Campbell, o leitor se perderia.

Uma mistura impressionante de colagem, desenho e aguada de nanquim, esse livro renova as credenciais de Campbell como artista dos artistas.

E é isso. Relendo essa história tive minha fé reabilitada.

Abs Moraes é um daqueles leitores de quadrinhos que ainda primam pela qualidade das histórias. Quando ele se empolga com uma HQ, é difícil controlar a sua verve. Se você publica alguma revista de histórias em quadrinhos e quer vê-la resenhada nesta coluna, entre em contato.

P.S.: The Birth Caul pode ser comprado através de http://www.eddiecampbellcomics.com ou http://www.topshelfcomix.com. Se você quiser ler mais a respeito de Moore e sua obra, dirija-se a
http://www.alanmoorefansite.com ou http://www.comicon.com. Há também uma página brasileira de fãs em http://www.alanmoore.cjb.net. Agradecimentos especiais a Joe Zabell, de quem roubei algumas palavras e idéias.

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