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Bone – Volume 1 – O vale ou equinócio vernal

24 dezembro 2018

Bone – Volume 1 – O vale ou equinócio vernalEditora: Todavia – Série em três volumes

Autores: Jeff Smith (roteiro e desenhos) e Steve Hamaker (cores) – Originalmente publicado em Bone – Out from Boneville, The Great Cow Race e Eyes of the Storm (tradução de Érico Assis).

Preço: R$ 79,90

Número de páginas: 448

Data de lançamento: Novembro de 2018

Sinopse

Expulsos da cidade de Boneville, os primos Fone, Phoney e Smiley se veem perdidos no Vale, uma região misteriosa e repleta de criaturas fantásticas.

Ao lado da garota Espinho, da Vovó Ben e do Grande Dragão Vermelho, os primos se verão embrenhados em um conflito entre os cidadãos do Vale e um exército de ratazanas. Ao mesmo tempo, forças tenebrosas parecem ressurgir das sombras, e uma grande guerra se anuncia no horizonte.

Positivo/Negativo

O que seria a definição de “sucesso” para uma autopublicação em preto e branco, no começo dos anos 1990, no país onde quem mandava (e ainda segue com poderoso pulso firme) são os multicoloridos super-heróis?

Os números de Bone são dignos da façanha: ao longo de 55 edições, com um período sendo publicada sob o selo da Image (reduto dos autores donos de suas criações), a série do norte-americano Jeff Smith contou com mais de 1300 páginas, catando pelo caminho dezenas de prêmios, dentre eles dez Eisner Awards e 11 Harvey Awards, superando a marca de mais de um milhão de cópias em 25 países pelo mundo.

Poderia ser mais, já que no Brasil o “mapa da mina” não seguia para o “x” do final da aventura envolvendo os primos Bone. Entre 1999 e 2010, a Via Lettera desmembrava um encadernado em dois e lançou 14 volumes em preto e branco, além de um spin-offEstúpidas, Estúpidas Caudas-de-Ratazanas (2008). Em 2015, foi a vez da HQM, agora em cores, com 1/3 desta nova edição da Todavia.

Nessa entressafra, em 2006, houve um episódio curioso, em que a Devir chegou a imprimir o primeiro tomo em cores, que tinha começado a sair recentemente nos Estados Unidos, mas foi impedida de lançar devido à renovação contratual da Via Lettera.

Com todos esses percalços editoriais, se tudo der certo, a saga verá seu desfecho por aqui ainda em 2019, já que a Todavia está programando mais dois calhamaços ao longo do ano. O “começo, meio e fim” que o autor sempre pensou para sua odisseia.

As criaturinhas albinas que lembram Pogo, de Walt Kelly (1913-1973), e o Shmoo (com narigão), de Al Capp (1909-1979), viviam na cabeça de Smith desde quando ele era uma criança.

Seu fascínio por epopeias literárias deram o tom da história. Por isso o Fone Bone não se desgruda de Moby Dick, clássico de Herman Melville (1819-1891), uma paixão do autor ao lado da trilogia de O Senhor dos Anéis, de Tolkien (1892-1973), em cuja estrutura do enredo e o clima da história se inspiram.

Adicione também os ensinamentos do “Homem dos patos”, Carl Barks (1901-2000), presente na avareza de Tio Patinhas do ganancioso Phoney Bone e nas situações ao mesmo tempo cômicas e aventureiras, que fluem de maneira bastante espontânea.

Na medida em que o Vale onde se encontram os protagonistas é apresentado, Jeff Smith passa essas referências de maneira reciclada, mas não no sentido ruim ou rançoso. É como se transformasse em algo completamente reconhecível, acrescentado de personalidade, presente nos diálogos, na narrativa e nas situações e mistérios que envolvem sonhos e dragões, corridas bovinas e defraudação, mapas e roedores em profusão.

Experiente no campo dos desenhos animados, muito da energia de Bone vem da ação física, bastante cinematográfica e do bem distribuído time nos intervalos de tempo, nas gags e nas sutilezas e exageros das expressões dos personagens.

Bone Bone

No primeiro ato, a predominância é o bom humor que circunscreve um público de várias faixas etárias. Por isso a obra foi muito conceituada como “infantil”, sendo direta e apresentando uma estrutura simples das HQs tradicionais de aventura.

Paulatinamente, o autor vai criando novas ramificações que envolvem segredos do passado e perigos que, a princípio, servem como “escada” cômica ou interagem com esse lado chistoso.

É o caso das estúpidas ratazanas, cujo objetivo de Smith é representar a mentalidade da máfia. Em dupla, como esquetes de comédia, elas servem muito bem como alívio cômico como “vilões” abobados de desenho animado. Porém, a outra faceta é quando estão em bando, na qual desaparece essa personalidade para se mostrarem como um perigo para os protagonistas.

Mantendo o humor (principalmente como o ranzinza Phoney e o não tão esperto Smiley), o que é acrescentado, o que é revelado e o que permanece em mistério servem de “deixa” para os próximos atos da série, mantendo o interesse do leitor do mesmo jeito de saber qual seria o fim do capitão Ahab, Ismael e a tripulação ou onde ia parar o Huckleberry Finn quando singrava o rio Mississippi.

Outro ponto positivo colocado na HQ é como as personagens femininas são bem exploradas no enredo. Tanto Espinho quanto a Vovó Ben têm presença, atitude e não são mostradas como “damas em apuros”. Tanto que o passado da fazendeira durona foi mostrado em um spin-off do título, Rose, com arte de Charles Vess, bem à vontade com o tema.

Concebido originalmente em preto e branco, principalmente por causa das limitações financeiras e por inspiração no underground de Maus, de Art Spiegelman, Jeff Smith revisitou o Vale para dar cores ao título, desta vez sob o telhado da editora Scholastic, responsável pela publicação de franquias literárias de sucesso como Harry Potter e Jogos Vorazes.

O responsável foi Steve Hamaker, que chegou a trabalhar nas capas do título quando saía em edições avulsas, sempre com a supervisão do próprio criador, em um período de cinco anos.

O resultado é um Bone mais cheio de “vida” (um dos argumentos do amigo Spiegelman para convencer Smith da empreitada). É muito interessante o trabalho original, mas igualmente atraente observar como as cores agregam à narrativa sem ser espalhafatosa, como um efeito especial bem realizado num filme em que ele não desempenharia o papel principal.

Hamaker – que também coloriu outro trabalho de Smith, Shazam & A Sociedade dos Monstros (Panini, 2014) – preenche sutilmente cenários antes inexistentes, coloca mais volume e tridimensionalidade discretamente e valoriza o clima das cenas com a predominância coerente de paletas: há um estudo de luminosidade nos ambientes e o leitor percebe sem alarde quando avança o dia.

Bone Bone

Essa nova investida também serviu para o quadrinhista “aparar” a narrativa. Mas não pense que essa “poda” surgiu apenas na transição para as cores. Smith chegou a confessar que ocasionalmente adicionava sequências inteiras para suavizar um ponto truncado da história já nas edições encadernadas em preto e branco.

Linhas de diálogo foram completamente reescritas para essas versões, algumas páginas foram adicionadas e outras até removidas. Um exemplo da nova interferência do autor neste volume está em O olho do furacão, quando Fone Bone e Espinho falam sobre o “mundo dos espíritos”.

A Todavia apresenta uma edição com ótima impressão em couché fosco, formato 16 x 23 cm, capa cartonada com orelhas, seção com as capas originais e um texto do criador relembrando a trajetória de Bone no aniversário de 20 anos, em 2010.

Jeff Smith não inventou a roda com sua saga épica cheia de aventura e humor. Já havia outros títulos que pavimentaram e faziam a reputação do meio indie nos Estados Unidos, como Cerebus, de Dave Sim, ou Love & Rockets, dos irmãos Hernandez, mas houve uma proeza desta série, que, da mesma forma como começa nas suas páginas, foi além das fronteiras mercadológicas – feito raro para o meio independente na época.

Assim como a contemporânea Estranhos no Paraíso, de Terry Moore, cada uma a seu jeito, marcou uma geração que estava com torcicolo de tanto olhar na direção dos comics de super-heróis. E foi além: pelo que abrange, Bone fez parte da leitura de pessoas das mais diversas idades e é herdado de forma geracional para essa nova leva de fãs.

A leveza do entretenimento, cujo ciclo no Brasil tudo indica que irá finalmente se fechar. Próximo passo, o “meio”. A continuar.

Classificação:

4,5

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