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CORTO MALTESE – AS CÉLTICAS

1 dezembro 2008


Autor: Hugo Pratt (texto e arte).

Preço: R$ 33,00

Número de páginas: 140

Data de lançamento: Setembro de 2007

Sinopse: Neste volume, há seis contos curtos protagonizados por Corto Maltese. Todos se passam na Europa durante a Primeira Guerra Mundial. São eles:

O anjo da janela do Oriente - Em Veneza, Corto busca as sete cidades de Cíbola e logo estranha que, mesmo durante os bombardeios austríacos, uma mulher deixa a luz de sua janela acesa à noite, tornando-se evidentemente um alvo fácil.

Sob a bandeira do ouro - Uma ação bem engendrada é realizada durante uma confusão de exércitos na Itália.

Concerto em "O" menor para harpa e nitroglicerina - Corto Maltese chega à Irlanda e se aproxima de um grupo de rebeldes que luta pela libertação do país. Ele conhece Banshee, uma garota que era apaixonada por um guerrilheiro traidor. Mas essa história vai mudar logo em seguida.

Sonho de uma manhã de inverno - Puck, Merlin, Morgana, Oberon e outras criaturas da tradição céltica usam magia para fazer Corto Maltese defender a Bretanha da invasão dos alemães.

Extravagâncias entre Zuydcoote e Bray-Dunes - Ao norte da França, Caim Groovesnore misteriosamente atira no Tenente de Trécesson, velho amigo de Corto.

Côte de Nuits e rosas de picardia - Manfred Von Richthofen, o Barão Vermelho, pode finalmente ser derrotado. Mas isso depende de Corto Maltese liberar suas garrafas do vinho Côte de Nuits a Clem, um jovem pastor australiano que nunca erra seu alvo quando embriagado.

Positivo/Negativo: Em 2006, a Pixel Media começou suas atividades editoriais com a publicação de Corto Maltese. Naquele ano, o ritmo foi acelerado: saíram três álbuns. A esperança de que o Brasil tivesse pela primeira vez a obra-prima de Hugo Pratt completa era grande.

Nesse sentido, 2007 foi um banho de água fria. Alegando motivos contratuais, o ritmo dos lançamentos caiu, e o 31 de dezembro chegou com apenas As Célticas como novidade nas livrarias.

No álbum, Hugo Pratt se impõe. É um dos melhores lançamentos da editora e do mercado editorial no ano. As seis histórias curtas são preciosidades. Cada uma acaba destacando um aspecto do autor, um artista múltiplo, de tanta grandiosidade que é preciso olhar para seu trabalho diversas vezes e observá-lo com lupas diferentes. Assim - e só assim - pode-se captar sua grandeza.

Em O anjo da janela do Oriente, que abre o álbum, Pratt se revela o aventureiro, o explorador que convida seu leitor a compartilhar com ele um mundo. Afinal, as cidades de Cíbola, do tal Eldorado espanhol, existiram? Havia de fato uma relação com os jesuítas? Por que a trama se desenvolve justamente em Veneza?

O roteiro deixa espaço para o leitor se debruçar sobre a trama. Foi o que fez o semioticista italiano Umberto Eco ao propor uma leitura com um viés investigativo das obras de Pratt. O estudioso mostrou que, ao menos em A Balada do Mar Salgado", o sentido aparente da história na verdade esconde uma outra aventura. A teoria está no texto Geografia imperfeita de Corto Maltese, publicado no Brasil dentro do livro Entre a mentira e a ironia, da editora Record.

Não é só O anjo da janela do Oriente que pede esse detalhamento de atenção, claro. O álbum é recheado de personagens reais e citações a fatos como a fuga de Frieda Von Richthofen com o escritor D.H. Lawrence. O relacionamento dos dois escandalizou Munique no começo do século passado e a vingança familiar acabou citada como motivadora do Barão Vermelho em Côte de Nuits e rosas de picardia.

Há outra história no álbum que escancara o altíssimo nível de erudição de Pratt: Sonho de uma manhã de inverno. A diferença, aqui, é o ângulo: o autor deixa de se mostrar preocupado apenas com o real e volta seus olhos para a cultura. Ao citar Shakespeare, revela não só o vasto conhecimento de literatura e folclore, mas também sua preocupação com a queda brutal das fronteiras promovida pelas guerras. Tanques e mísseis, afinal, destróem mais do que um punhado de quartéis e casa: eles demolem civilizações e pensamentos.

É curioso notar, também, que Sonho de uma manhã de inverno compartilha inspiração, cenário e personagens com uma das mais marcantes HQs que o escritor Neil Gaiman produziu dentro da série Sandman: Sonho de uma noite de verão. Mas, na comparação, Pratt é mais cru e sedutor.

Mergulhar nas citações de Corto Maltese não é fichinha, mesmo para leitores tarimbados. Pratt não dá moleza. Nem a edição nacional. Há algumas notas que mal resumem quem são ou quem inspirou fulano e beltrano, o que até tem um lado bom. Afinal, deixa espaço para se descobrir que a família do Barão de Rothschild produz até hoje alguns dos mais conceituados vinhos do mundo - e, quem sabe, prová-los. Ou então para sondar se a teoria conspiratória de que os Rothschild pertencem aos illuminati tem alguma relação com essa história.

O problema maior, mas que não chega a ser grave, é quando as notas estão deslocadas. Por exemplo: em Sob a bandeira do ouro, o nome do personagem Hernestway aparece pela primeira vez na página 30, mas a nota que o coloca como uma homenagem ao escritor Ernest Hemingway só está na 44. O deslize se repete quando Corto Maltese encontra Seamas O'Hogain na página 57 - ambos citam Sinn Fein, mas só na seguinte o significado da expressão é explicado.

Pratt também é um estilista, um artista que usa nanquim preto e papel para contar grandes histórias. Em Concerto em "O" menor para harpa e nitroglicerina - um dos melhores nomes que uma HQ já recebeu - cria a sensação da noite de fog britânica ao raspar o nanquim. É simples, belo e eficientíssimo, uma boa amostra dos padrões que guiam toda a arte de cabo a rabo do álbum.

Sob a bandeira do ouro serve, às avessas, para mostrar as habilidades narrativas de Pratt. Para contar sua história, que se passa durante uma confusão militar em plena Primeira Guerra, ele abre mão das técnicas narrativas e faz tudo ao contrário: inverte ângulos, direções, atropela mesmo. É virtualmente impossível seguir o que está acontecendo com nitidez, a ponto de, na página 36, um soldado perguntar "Ei! Quem é que está entendendo alguma coisa?".

E eis que Corto Maltese entra em cena: esguio e elegante, controla a situação como Pratt conduz a narrativa. Sua nobreza torna-se, evidentemente, um contraponto à baixaria da guerra. E a história de combate se torna um libelo pacifista.

No caos e na ordem, Corto Maltese tem um rumo e uma missão: ser o porta-voz da visão de mundo de Pratt, um dos quadrinhistas mais interessantes de todos os tempos. A multiplicidade e a riqueza de criador e criatura não se confundem: naturalmente se somam. Seguir suas histórias é um prazer sem medidas. Resta torcer que a Pixel traga, conforme anunciou esta semana em Pixel Preview # 2, mais álbuns ao longo deste ano e dos próximos.

Classificação:

4,0

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