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Crônicas de Jerusalém

14 fevereiro 2014

Crônicas de JerusalémEditora: Zarabatana - Edição especial

Autor: Guy Delisle (roteiro e arte).

Preço: R$ 54,00

Número de páginas: 336

Data de lançamento: Março de 2012

Sinopse

O livro pretende fazer uma crônica sobre a cidade de Jerusalém, seus costumes e as idiossincrasias de uma das regiões mais politicamente confusas do planeta.

Positivo/Negativo

Crônica é o estilo de gênero literário no qual o escritor coloca sua visão acerca daquilo que conhece, percebe ou testemunha. É a percepção do autor sobre o seu mundo, em dado momento e local.

Dito isso, percebe-se a intenção de Guy Delisle, canadense que acompanha sua esposa no programa Médicos sem Fronteiras, ONG destinada a combater doenças em regiões inóspitas ou mal assistidas.

O autor, a esposa e seu casal de filhos viajam para Jerusalém com a missão de permanecer um ano por lá. Enquanto ela trabalha, Delisle documenta.

O documento, porém, é bem diferente daquele produzido por Joe Sacco – com quem ele é confundido em determinado momento do livro –, porque existe apenas o olhar de Delisle, sem se preocupar muito com julgamentos ou denúncias, ainda que estes existam também.

Não apenas Jerusalém, mas toda a Palestina é um local confuso. Já nas primeiras páginas uma pessoa tenta explicar a dinâmica da região ao protagonista. Ele diz “ah, sim, entendi” para sua interlocutora, ao mesmo tempo em que conta ao leitor que não entendeu nada.

A Palestina, como o leitor pode perceber, é muito complexa.

Essa complexidade é em parte explorada por Delisle, mas apenas de forma tangencial, já que os momentos didáticos da obra aparecem apenas nos momentos em que o leitor não conseguiria compreender sem um texto explicativo.

As várias idiossincrasias da região são muito bem exploradas. Por meio de Delisle, o leitor fica sabendo como as mulheres usam a piscina de burca, como são as festas, quais as divisões de dias de trabalho, de acordo com as religiões ali presentes, como é a relação entre o trabalho e o momento de preces.

É mostrado um casamento, em que apenas homens têm permissão de dançar, um bairro ultraortodoxo, onde apenas as mulheres trabalham porque os homens precisam estudar a Torá, e diferentes guias turísticos, um para cada religião.

A diplomacia – ou a falta dela – é muito bem explorada na obra. Guy Delisle mostra as dificuldades da população em seu cotidiano. Andar um ou dois quarteirões pode ser uma tarefa hercúlea, sendo o cidadão obrigado a mostrar documentos, passar por detector de metais e aguardar um bom tempo em uma fila de espera. Há no livro vários momentos em que pessoas normais são obrigadas a se despir para garantir que não carregam bombas ou armamentos.

A divisão religiosa também é latente. Certas coisas só funcionam para judeus, outras tantas apenas para muçulmanos. Algumas ainda estão lá para cristãos, e a tolerância é algo que passa muito longe daquela região.

Delisle até tenta fazer sua lição de casa e explicar historicamente o motivo de tanto ódio e segregação, mas falha. E essa talvez seja a maior qualidade do álbum. Porque é muito complicado para um ocidental que vive relativamente em paz, seja ele canadense, brasileiro ou europeu, entender por que pessoas que nunca se viram se odeiam tanto.

Há locais onde não se pode ir ou será apedrejado. Outro que é aberto em determinado horário para muçulmanos e raramente para outras religiões. Deve-se lembrar, porém, que este e outros tantos lugares são o berço de várias religiões, e a discriminação de uma para outra é o que leva a maior parte das pessoas a se odiarem.

O papel dos Estados Unidos na construção de Israel também é discutido, bem como o descaso das Nações Unidas com os não judeus. Mesmo assim, fica claro que mais que uma “mão invisível ianque”, o que mais gera o conflito é a intolerância e uma cultura de ódio que vem se retroalimentando por centenas de anos.

É interessante também apreciar os momentos cotidianos de Delisle – as partes mais divertidas do livro estão aí. O filho pequeno que não para de falar, a sirene com o horário da oração que acorda a bebê recém-dormida, a dificuldade de mostrar seus quadrinhos para uma sala de arte recheada de mulheres, o pneu que fura, uma tartaruga encontrada no deserto e logo é perdida e o medo de cruzar um bosque sem luz são algumas das partes mais engraçadas.

A arte também é impecável. A expressividade dos desenhos simples de Delisle consegue transmitir toda sorte de sentimentos, e casa perfeitamente com a prosa. Leve, mas não leviana, delicada, mas não frágil.

As cores também são muito bem utilizadas, seja cinza, azul, marrom ou vermelho, cada tom tem uma função dentro da trama, e ajuda o leitor a compreender melhor tanto o estado de espírito do escritor quanto a severidade da informação que sai da página.

O trabalho da Zarabatana está impecável. Com o apoio do Institut Français, Médiathèque de France e do próprio consulado francês, o álbum conta com a tradução de Cláudio Martini e preparação de texto de Delfin, que devem ter tido trabalho não apenas para adaptar a obra, mas também compreender a terra onde se passa a história.

Enfim, pode-se dizer que se Shenzen, PyongYang e Crônicas Birmanesas são ótimos, em Crônicas de Jerusalém Delisle está ainda melhor. Mais atento, sarcástico e emotivo. O livro reflete um ano em uma terra estranha. E é uma grande crônica.

Classificação

4,5

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