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O CIRCO DE LUCCA

1 dezembro 2008


Autor: Jozz (texto e arte).

Preço: R$ 39,00

Número de páginas: 128

Data de lançamento: Janeiro de 2008

Sinopse: Lucca é um estudante de desenho industrial que tem como tarefa de uma disciplina a elaboração de uma história em quadrinhos. Enquanto constrói o seu protagonista, um palhaço de circo, convive com os colegas da faculdade.

Positivo/Negativo: Não são apenas coincidências que unem a trama de O circo de Lucca com a história real de elaboração do álbum. Assim como seu personagem, Jozz criou de fato sua HQ como um trabalho de seu curso de desenho industrial. A disciplina é ministrada no Mackenzie, em São Paulo, pelo quadrinhista Luiz Gê, que apresenta o orientando no prefácio.

As características sui generis do projeto atraíram a atenção da imprensa especializada e, em seguida, da Devir, que acabou vertendo o trabalho em álbum no começo deste ano.

A experiência da leitura é interessante. Jozz abusa da metalinguagem para mostrar como se produz uma HQ. Fala e mostra o surgimento dos personagens, revela fontes de inspiração, dedica páginas e páginas às dificuldades, como brancos criativos e noites passadas em claro.

Entremeando o papo sobre quadrinhos, está a vida cotidiana de um jovem comum e sua relação com a sua turma. Há vários personagens recorrentes das histórias desse tipo: os amigos, um professor exigente com bom coração, um dono de sebo que vira mestre e até a amiga por quem Lucca se apaixona.

Com tanta riqueza para explorar, Jozz mal entra em detalhes técnicos sobre a elaboração de HQs. Esses aspectos serão abordados na monografia que encerra o volume.

E é justamente aí que está o xis da questão de O circo de Lucca.

Por um lado, Jozz ganha espaço para desenvolver bem a sua trama: dá cara para os personagens e tem fôlego para mostrar ao leitor que é um narrador competentíssimo quando se trata de transição de quadros e de escolha de enquadramentos.

Mas, por outro, a história em si fica vazia. Até chegar ao final apoteótico, que tem os dois pés enfiados na obra do diretor italiano Federico Fellini (por sinal, fã e autor de quadrinhos), a história fica em cima do muro. Às vezes, parece ser sobre a criação de uma HQ, sim. E então perde o rumo e vai falar das amizades do jovem, do bar da faculdade.

A situação se complica quando o autor esquece que o leitor (que não é mais um colega estudante do Mackenzie) não compartilha das mesmas referências. Logo no começo, não dá para saber onde Lucca mora. Não deve ser a casa da própria família, porque logo chega um novo morador. No sofá, há uma moça que implica com o protagonista, mas não dá para saber quem ela é: mulher, amiga, irmã?

Mais adiante, o dono de sebo erudito acaba se revelando um personagem que está sobrando - o papel arquetípico de mestre já está ocupado pelo professor, e os dois acabam disputando o mesmo espaço na narrativa.

A arte também tem seus problemas. Em diversas páginas, em especial no começo, a finalização é pobre, e os cenários estão mal trabalhados. É como se o artista, como o personagem, tivesse evoluído ao longo da obra. Se foi isso que aconteceu, ótimo, mas as páginas de abertura podiam ter merecido uma revisão. Há inclusive um erro recorrente em obras de quadrinhos: na cena em que Lucca lê Corto Maltese - Sempre um pouco mais distante, a arte da capa é colocada na quarta-capa.

São detalhes pequenos, mas que tiram o brilho de um álbum que poderia ser bem melhor do que é. O próprio desfecho prova que Jozz é capaz de vôos mais altos, cheios de rasantes ousados e malabarismos. É uma pena que seu trabalho de maior repercussão tenha ficado contaminado com problemas cuja solução parece relativamente simples.

Outro ponto a ser avaliado é o segmento final do livro, chamado Nos bastidores. Trata-se de uma breve monografia sobre a produção de quadrinhos. É a parte mais prática, em que Jozz fala de técnicas de desenhos, de reprodução, de recursos narrativos, tenta definir a expressão "história em quadrinhos" e por aí vai, em um cozidão teórico. Tudo muito rápido, com várias citações, num tom que soa mais como o trabalho de graduação universitária (que, de fato, é) do que como um ensaio (o que já seria desejável para uma publicação comercial como esta).

Valeria muito mais a pena, por exemplo, deixar de lado a primeira metade do texto e investir em uma versão mais aprofundada do segmento final, em que o autor examina mais diretamente a produção da própria obra.

É bom notar que, a rigor, não é o trabalho acadêmico do autor que está em jogo nesta resenha - essa avaliação coube a seus professores e, pelo que se sabe, atribuiu à obra uma boa nota.

Aqui, é um exercício de simular como a obra será recebida pelo leitor comum, que não tem vínculos com a academia.

Em um mundo ideal, em que cada um cumpre o seu papel, poderia se dizer que o editor ainda teria muito trabalho antes de ter mandado o livro para a gráfica. Afinal, num modelo clássico, cabe a esse profissional comandar a adequação do livro proposto pelo autor para a publicação.

O problema, nessas horas, é que o mercado brasileiro é deficiente em diversos aspectos. Só é prodigioso em inventar desculpas para os próprios erros - excesso de trabalho, carência de profissionais etc. Algumas são justificadas, outras, meras muletas, mas nesse jogo de palavras nem sempre dá para diferenciar umas das outras.

É nesse contexto que o "editor" pode deixar de ser a pessoa física que exerce o cargo na editora e ganhar diversas facetas: pode ser um autor teimoso que não aceita sugestões, um prazo apertado ou até mesmo uma negociação malfeita.

No fim das contas, porém, o veredicto ainda é desanimador: com um pouco mais de trabalho, O circo de Lucca seria um trabalho primoroso. Do jeito que está, fica em débito justamente com seu leitor.

Classificação:

4,0

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