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Vermelho, Vivo

3 fevereiro 2012

Vermelho, VivoEditora: Devir Livraria - Edição especial

Autores: Cristina Judar (roteiro), Bruno Auriema (arte), Bruno Auriema e Rodrigo Perrote (cores).

Preço: R$18,50

Número de páginas: 48

Data de lançamento:Outubro de 2011

Sinopse

Clara Martins é uma pessoa frustrada com seu cotidiano, insatisfeita com seu trabalho no banco, com seus colegas, com sua vida. Um dia, de repente, tomada por um impulso, ela furta um batom de uma loja.

Apanhada no ato, Clara é levada para uma salinha de interrogatório. Ali, o leitor conhecerá um pouco mais sobre o passado e segredos sombrios dessa moça e a testemunhará fazer uma perigosa opção.

Positivo/Negativo

Cristina Judar e Bruno Almeida já haviam trabalhado juntos em Lina.

Neste segundo álbum da dupla, a primeira coisa que salta aos olhos é a bela arte de Bruno, talvez ainda melhor do que em Lina.

A capa da edição é muito atraente, direta e simples; e parece criar uma identidade para os trabalhos da dupla, pois seu álbum de estreia também apresentava o rosto da protagonista em close.

A composição das páginas cria uma narrativa clara e fluida, demonstrando a familiaridade de Bruno com a linguagem sequencial. Apenas na página 28 foi escolhida uma disposição de painéis que pode provocar alguma dúvida no sentido de leitura, mas nada que comprometa.

O design dos personagens é competente e o desenho é confiante e expressivo, mostrando claramente emoções e intenções.

Outro aspecto interessante da obra é se tratar de adaptação de um conto literário, de autoria da própria Cristina Judar. A presença do texto original como um "extra" da edição permite tecer uma série de comparações e reflexões sobre o roteiro.

E para quem não leu a obra, a hora de parar é agora, pois a seguir há spoilers, informações que podem estragar surpresas do álbum.

Não existem fórmulas ou regras para se contar uma história. Entretanto, é interessante que ela seja clara o suficiente para o leitor compreender os objetivos do autor.

O que se pretende com a história? Levantar questionamentos no leitor? Criar suspense? Experimentar com a linguagem? Simplesmente emocionar e divertir?

Este é o problema de Vermelho, vivo em sua versão em quadrinhos: o texto confuso e rebuscado atrapalha a apreciação de uma história com ótimo potencial.

Nesse sentido, o conto original é mais interessante e bem desenvolvido.

Nele, Clara Martins é uma pessoa imoral. Frustrada em seu cotidiano, tomada por um impulso, furta um batom em uma loja de departamentos. Apanhada em flagrante, em vez de recuar ela decide ir ao extremo: assassina uma pessoa.

Mesmo a situação de chantagem a que é submetida não justificaria o assassinato. Ela poderia encontrar outras saídas, todas menos drásticas. Mas não foi pelo batom que Clara matou o chefe de segurança.

A narrativa em primeira pessoa apresenta uma personagem com senso de superioridade, desprezo pelos colegas e pela vida que leva. É a insatisfação de Clara, o desejo de romper com a mediocridade e uma escancarada ausência de princípios morais que a levam ao assassinato.

O conto é veloz: apresenta uma situação, uma conclusão e expõe o egoísmo psicopata de sua protagonista de maneira crua.

Cristina comenta nos extras da edição que para a versão em quadrinhos foram acrescentados personagens e eventos. De fato, as modificações eram interessantes e promissoras, mas não se desenvolvem satisfatoriamente.

A grande diferença é a apresentação da infância de Clara. Aos seis anos de idade, era trancada num porão escuro por seu irmão mais velho quando seus pais saiam à noite.

Foi no porão que Clara ouviu uma voz da escuridão, com quem fez amizade e aprendeu "estratégias".

Em nenhum momento fica claro se a voz na escuridão é real (e sobrenatural) ou se é um delírio psicótico da protagonista. Após o flashback da infância, a voz não torna a ser ouvida em nenhum outro momento. Pelo menos, não de maneira clara.

Há uma sequência na sala do interrogatório em que a luz cai por um breve momento. Antes desse blackout, Clara está sentada e parece insegura e aflita. Quando a energia retorna, a expressão e a linguagem corporal da personagem demonstram confiança e perversidade.

Essa incerteza quanto à natureza da voz como um sinal de psicopatia ou fenômeno sobrenatural é uma ótima sacada.

A trama original recebe ainda o acréscimo do personagem Batista, zelador do prédio onde Clara mora. Ele é casado com uma evangélica fervorosa e tem forte atração pela protagonista, que sabe do desejo de seu colega e sente nojo disso.

A voz e o personagem Batista poderiam ser explorados de modo a gerar interessantes situações. Afinal, o zelador é um personagem que oscila entre a fidelidade à esposa e à religião e o desejo pecaminoso por Clara.

Já a incerteza quanto à natureza da voz e a religiosidade do personagem poderiam render um interessante diálogo.

Esse era um potencial dramático que poderia ter sido explorado na trama. Não trabalhar essa possibilidade pode não desmerecer a obra, mas o problema é que nenhuma das boas ideias presentes se desenvolve satisfatoriamente.

Batista e suas interações com a protagonista são apresentadas em curtas três páginas no início da HQ e ele só é mencionado novamente na conclusão.

A voz parece não fazer diferença nenhuma na personalidade distorcida de Clara. Se toda a sequência que mostra a infância da protagonista fosse tirada, ela não faria falta na história.

Samuel Figueroa, o único personagem que é mostrado ao leitor com espaço para mostrar uma personalidade própria, acaba tendo falas que soam frias e impessoais. As poucas expressões coloquiais que tentam diferir os seus diálogos do texto narrativo da protagonista soam artificiais.

A voz, Batista, Samuel Figueroa, todos bons personagens e ideias que permanecem isolados, mal desenvolvidos, sem um vínculo coeso, escondidos debaixo do texto.

A narrativa de Clara em primeira pessoa é cheia de frases empoladas que, às vezes, não parecem fazer sentido. O que é estranho, uma vez que, no conto, a autora demonstra escrever com clareza.

Observando com cuidado, percebe-se que Vermelho, vivo (que foi uma das obras selecionadas para o ProAC - Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, em 2010) precisaria de uma abordagem mais clara e direta na elaboração de seu texto e de estabelecer e desenvolver melhor as relações entre eventos e personagens.

Enfim, mostrar a que veio.

Classificação

2,0

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